domingo, 30 de março de 2025

Estreias da semana – Nos cinemas - Parte 1


Quando chega o outono

 

François Ozon já provou ser um cineasta autoral dos mais sensíveis com seus filmes intensos que mesclam gêneros. Para mim um diretor formidável, exímio representante do atual cinema francês. Festivais renomados como Cannes, Berlim e Veneza, e até o Bafta, já exibiram seus longas-metragens nos últimos 25 anos. Tenho boa memória de obras como ‘8 mulheres’ (2002), ‘Swimming pool – À beira da piscina’ (2003), ‘O tempo que resta’ (2005), ‘Potiche – Esposa troféu’ (2010), ‘Dentro de casa’ (2012), ‘Jovem e bela’ (2013), ‘Uma nova amiga’ (2014), ‘O amante duplo’ (2017), ‘Graças a Deus’ (2018), ‘Verão de 85’ (2020) e ‘Está tudo bem’ (2021) – veja que ele faz de um a dois filmes por ano, de comédia dramática a suspense, e seus trabalhos continuam atuais, sempre com algo a nos contar. ‘Quando chega o outono’ (2024) é seu novíssimo trabalho, exibido no festival de San Sebastian e lançado nesse fim de semana nos cinemas brasileiros pela Pandora Filmes. Bucólico, dramático, com vieses de um humor que arranca estranhos risos, o filme transcorre num vilarejo distante em Borgonha, na França, onde vive uma solitária senhora, que se dedica à casa e ao extenso jardim com horta, Michelle (papel da veterana atriz Hélène Vincent, aos 81 anos, de ‘A liberdade é azul’). Ela espera ansiosa a chegada da filha e do neto, que vem de Paris passar alguns dias no campo. Sua melhor amiga é Marie-Claude, uma idosa cujo filho, que cumpre pena na prisão, está para ser solto (papel de outra veterana, que gosto muito, a septuagenária Josiane Balasko, de ‘Uma cama para três’). Aposentadas, as duas moram perto e passam tempo juntas na tranquilidade daquela cidadezinha campestre. Michelle acaba em atritos com a filha, Valérie (Ludivine Sagnier, do seriado ‘Lupin’), que repudia o passado da mãe – que será revelado depois. No jantar, a mãe idosa serve para a filha e para o neto cogumelos, sem saber que são venenosos - somente Valérie consome, passa mal e vai para o hospital, e a partir daí uma sucessão de acontecimentos desgastará a relação daquela família e da amizade de Michelle com Marie-Claude, inclusive haverá um crime brutal.
Nesse filme cheio de idas, vindas e reviravoltas, com momentos brilhantes, outros charmosos e com um elenco maravilhoso com personagens repletos de camadas, Ozon constrói uma trama que parece uma fábula moderna sobre relação de pais e filhos, que carregam sentimento de culpa/remorso e com o passado que arromba a porta. É uma obra fascinante que começa como um filme leve, nas lindas paisagens de campo, e aos poucos a tensão aumenta o tom para um retumbante drama familiar. Mais um Ozon a se conhecer e admirar.




Mário de Andrade: O turista aprendiz

 

Documentário e drama com leve humor se fundem nesse interessantíssimo filme sobre uma parte da vida do escritor, poeta, crítico e musicólogo paulistano Mário de Andrade (1893-1945), fundador do movimento modernista de 22. Mente brilhante, homem multifacetado e romancista de uma das obras mais festejadas daquele período, ‘Macunaíma’, Andrade escreveu um romance menos lembrado, ‘O turista aprendiz’, publicada um ano depois de ‘Macunaíma’, em 1929. Nele, faz uma viagem pelo Brasil, para regiões remotas do Norte, mostrando a variedade cultural do extenso país. O filme se apoia nos manuscritos, espécie de diários, de um Andrade inquieto, quando de uma expedição que participou em 1927 pelo Amazonas e culminaria nos textos do livro ‘O turista aprendiz’. Na longa viagem, conheceu e registrou as comunidades indígenas e ribeirinhas, além da arte, da fauna e da flora do lugar. Essas anotações só seriam públicas dois anos antes da morte dele, em 1943. Aqui, há uma adaptação dessa aventura por lugares exóticos, que recontam a História do Brasil. É o ponto de vista de Mário de Andrade, como se o filme estivesse onisciente, dentro da cabeça do escritor, numa mistura poética de realidade e ficção. Enquanto os minutos correm, vemos fotos de Andrade no rio Amazonas, pinturas sobre ele, o escritor em frente ao microfone contando causos, cantando estirado numa espreguiçadeira, datilografando e recebendo indígenas. É um Andrade de malas prontas para viajar a fim de redescobrir os grotões de um Brasil imenso, profundo e pouco falado. Vi o filme com fascínio e curiosidade, um trabalho de mestre de Murilo Salles, cineasta veterano, de ‘Nunca fomos tão felizes’ (1984), ‘Como nascem os anjos’ (1996) e ‘Nome próprio’ (2007). A grande intepretação do ator Rodrigo Mercadante como o protagonista vai além dos limites do filme – o ator é muito parecido com o escritor e há 25 anos o interpreta em peças, performances, shows musicais e projetos audiovisuais. A estética do longa também é um ponto alto, alternando cor, preto-e-branco, telas divididas, montagens inusitadas, com Andrade falando para a câmera e até ele num fundo rosa com faixa de miss num desfile de moda! Conheçam. Nos cinemas brasileiros com distribuição da Cinema Brasil Digital.




O bom professor

 

A Mares Filmes surpreende com seu catálogo, maior parte dele com fitas europeias de festivais. Nesse ano a Mares lançou nos cinemas brasileiros dois longas-metragens do Oscar 2025, ‘Flow’ (2024), animação da Letônia ganhadora na categoria, e ‘A semente do fruto sagrado’ (2024, vencedor de cinco prêmios em Cannes), indicado como melhor filme estrangeiro; e para os próximos meses já anunciou a distribuição de ‘Memórias de um caracol’ (2024 – também indicado ao Oscar de animação) e ‘Bolero – A melodia eterna’ (2024 – exibido no Festival de Rotterdã). O novo filme em cartaz da Mares Filmes é ‘O bom professor’ (2024), contundente drama franco-belga que teve première no Brasil na última edição do Festival Varilux, em novembro passado. Estrelado pelo ator François Civil, de ‘Amor à segunda vista’ (2019), conta a história de um dedicado professor de Ensino Médio indevidamente acusado de assediar uma estudante. A acusação é em decorrência de uma má interpretação dos alunos, após Julien tentar criar vínculos com a turma e dar atenção especial à sala. Julien, que esconde ser gay, vira alvo dos estudantes, inclusive dos pais dos alunos e de parte dos colegas de trabalho. A escola fica dividida com uma questão: o professor cometeu ou não assédio contra a jovem?
Civil, um ator convincente e fotogênico, traz nas expressões faciais todo o dilema dramático vivido com os boatos de ser assediador – desde o início do filme sabemos que ele é inocente, mas pelo olhar dos alunos e da sociedade, ele já foi ‘julgado e condenado’, sendo, portanto, um criminoso que não pode mais pisar na escola. É um filme sobre uma realidade dura, a do ensino público na França, com alunos de contextos familiares adversos, e como os professores estão sujeitos a julgamentos e abandono – aos poucos o protagonista é rejeitado até pelo próprio namorado diante da crise que se instala. Escrito e dirigido por Teddy Lussi-Modeste, de ‘O preço do sucesso’ (2017, com Tahar Rahim), o filme é um soco no estomago, que nos faz refletir muito. O título original, ‘Pas de vagues’, alude à expressão escolar ‘Sem tumulto’, uma forma de controlar os alunos no instante de gritarias e brigas.



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