Cinema 'Blaxploitation'
A Versátil Homem Video acaba de lançar no mercado, em DVD, três boxes da Blaxploitation, contendo ao todo 15 longas-metragens. São eles 'Blaxploitation vol. 5', 'Blaxploitation vol. 6' e 'Obras-primas do terror - Blaxploitation'. Dentre os filmes que compõem as caixas estão 'O cafetão' (1973), 'Blackenstein' (1973), Inferno no Harlem (1973), 'Jones, o faixa preta' (1974), 'Car Wash: Onde acontece de tudo' (1976) e 'O genro do diabo' (1977). A distribuidora também lançou um livro temático, 'Blaxploitation - Filmes essenciais', com 80 páginas. Nele há 13 textos escritos por jornalistas e críticos de cinema convidados - um deles é o meu, que segue abaixo, na íntegra.
Rudy Ray Moore, o
furacão da Blaxploitation
Rudy Ray Moore (1927-2008)
é o mais puro sinônimo da Blaxploitation. Ao lado de Melvin Van Peebles, Jim
Brown, Richard Roundtree e Jim Kelly, estampou os principais filmes do cinema
negro dos anos 70. Moore foi um multiartista completo: ator, comediante,
roteirista, músico, produtor e cenógrafo (só não dirigiu). Nasceu no Arkansas, em
uma família pobre que residia num vilarejo no campo. Ele e seis irmãos eram
sustentados pelo pai, um minerador, e aos 15 anos partiu sozinho para trabalhar
no mundo do entretenimento. Tinha verve o humor, por isso foi parar em clubes
noturnos contando casos engraçados, uma espécie de comediante stand-up. Serviu
o Exército, entre os soldados zoava e soltava anedotas, até que no fim dos anos
50 mudou-se para a Califórnia, onde foi contratado como balconista de uma loja
de discos, a Dolphin, que também era uma gravadora. Ali, Moore se enfiou de
cabeça no mundo da música, e como a loja em Hollywood era famosa, passeavam
pelo local atores, atrizes e diretores de cinema. Ele dava uma mão a um DJ amigo
que trabalhava numa rádio a poucas quadras da loja de discos, entrava vez ou
outra no ar experimentando fazer piadas ao vivo. Em seguida tornou-se gerente
da Dolphin. Gravou álbuns de rhythm and blues (R&B) nos anos 50 e
60, dando os primeiros passos para o reconhecimento artístico; mas o boom da
carreira de Moore veio entre 1970 e 1971, quando do rhythm and blues
sofisticado gravou discos com poemas malucos e piadas abusadas, chamados por
ele de “monólogos de rap”, causando enorme falatório pelo palavreado e pelas
capas dos álbuns, todas eróticas, com Moore seminu cercado de mulheres com
peitos à mostra. Nas faixas, ele não media os palavrões e frases com duplo
sentido. Nos três primeiros discos dessa nova fase da carreira - ‘Eat out more often’,
‘This pussy belongs to me’ e ‘The dirty dozens’, Moore introduziria um tipo
que, num futuro bem próximo, usaria no cinema; seriam eles Dolemite e Petey Wheatstraw,
protagonistas respectivamente dos filmes ‘Dolemite’ (1975) e ‘O genro do diabo’
(1977).
Dolemite – das ruas
para as telas
Para criar Dolemite,
Moore se inspirou nas piadas e poemas de rua de um bêbado de nome Ricco que
frequentava a loja de discos Dolphin. O homem contava histórias fabulosas
rimando tudo, então Moore adaptou as falas para o rádio. Quatro anos depois, em
1975, arriscaria todas suas economias para produzir a versão de ‘Dolemite’ para
o cinema, numa época em que Hollywood vivia o auge da Blaxploitation, o cinema
policial negro que contestava padrões e levava para o mercado atores e atrizes
pretos para o protagonismo nas telas.
No documentário ‘I,
Dolemite’ (2016, de Elijah Drenner), que vem como extra no box em DVD ‘Blaxploitation
- volume 4’, da Versátil Home Video, o biógrafo de Rudy Ray Moore, Mark Jason
Murray, comenta que para Moore realizar o filme ‘Dolemite’, juntou royalties da
venda de seus discos, cerca de U$ 100 mil dólares na época.

Mesmo com o roteiro em
mãos, escrito por um amigo que era ator, Jerry Jones, Moore não seguia as falas
do jeito que estava no papel – ele costumava improvisar, lembrando de histórias
e rimas, muitas delas infames.
‘Dolemite’ foi seu
primeiro trabalho. Moore interpreta um cafetão que sai da cadeia com o objetivo
de se vingar dos bandidos e policiais que o incriminaram indevidamente. Ele
solta palavrões a cada minuto, fala e pensa em sacanagem, luta kung fu e
inaugura uma boate para ganhar a vida, ao mesmo tempo em que procura seus
algozes. Vie cercado de mulheres e armas. Por causa de ‘Dolemite’, Moore
arrastou o apelido do personagem a vida toda, virou um alter-ego, até porque,
por causa do tipo excêntrico de Dolemite, começou a se vestir com o mesmo
figurino extravagante - ternos coloridos, óculos grandes, chapéu de lado e
bengala. Bizarro, maluco e erótico, ‘Dolemite’ estreou tímido em poucas salas,
em seguida, depois de muita negociação, entrou no circuito e fez bons milhões,
surpreendendo Moore e a equipe. O público pedia mais Dolemite, então...

Dá-lhe, Dolemite.
Agora um tornado!
O personagem-chave de
Rudy Ray Moore, Dolemite (o nome é uma junção da pedra ‘dolomite’ com
‘dynamite’) ganharia uma continuação no ano seguinte. ‘O tornado humano’ (1976)
traria Dolemite ainda mais malucão, com mais adrenalina na veia e sede de
vingança. Agora, ele vai para a Califórnia para ajudar suas prostitutas e
colegas a lutarem contra um mafioso branco. Pancadaria, tiros, carros em alta
voltagem não faltam. E muitas cenas eróticas, com bundas femininas rebolando na
tela, apimentam o longa-metragem. A direção mudou, mas manteve o tom nonsense e
frenético do original – D'Urville Martin, que era ator, dirigiu o anterior, e
aqui quem dirigiu foi Cliff Roquemore, que faria parceria com Moore em pelo
menos dois outros trabalhos.
Tanto ‘Dolemite’ quanto
‘O tornado humano’ seguem a cartilha da Blaxploitation; filmes de baixo
orçamento, recheados de gírias do gueto, muita violência, roupas chocantes, uma
mensagem política e de poder advinda do movimento Black Power e a personalização
das figuras negras como super-heróis ou anti-heróis. Já que os grandes estúdios
fechavam as portas para os pretos, as produtoras menores faziam o trabalho, projetando-os,
primeiramente, para as telas dos cinemas de pequeno circuito, o que os tornavam
atores e atrizes cultuados, e depois em cinemas maiores. A representatividade
acontecia com forte potência nos filmes inusitados e ousados da Blaxploitation.
Josiah Howard, na introdução do seu livro ‘Blaxploitation Cinema: The essential
reference guide’ (2008), diz que os filmes da Blaxploitation eram feitos de
negros para negros, procurando atrair o público preto para as salas e ali na
tela mostrar os reais problemas da sociedade. Em artigo científico, o professor
da Universidade de Washington Zachary Manditch-Prottas concorda com a
explicação acima e, utilizando como base esse livro de Josiah Howard, relata
que “o termo Blaxploitation funcionou inicialmente como um canal carregado para
debates críticos sobre as implicações psicológicas e políticas da representação
negra na tela nos últimos anos da era dos direitos civis”.

Moore e o diabo
Um ano depois de ‘O
tornado humano’, Rudy Ray Moore ficaria frente a frente com o demônio. Isso
porque seu novo filme seria ‘O genro do diabo’ (1977), uma engraçadíssima e
controversa comédia macabra em tom autobiográfico, dirigida novamente por Cliff
Roquemore - no original, ‘Petey Wheatstraw’. O filme começa com uma prece em
poesia, do diabo negro, depois mostra o nascimento de Petey – a mãe, enorme de
gorda, deitada na cama, conversa com o obstetra, que pergunta se dali vai
nascer um elefante, pelo tamanho da barriga. Petey nasce já menino grande, com
seis anos, como ‘Macunaíma’ - e até há uma referência direta com
‘Frankenstein’, quando o obstetra grita ‘It’s alive’. O menino sai batendo no
médico e no pai, por perturbá-lo todos os dias na barriga da mãe. Ele cresce
aprendendo artes marciais no fundo de um quintal, sob os ensinamentos de um
mentor. Vira um comediante em boates, sai de Miami para Los Angeles e se torna
conhecido. Certo dia, é fuzilado por bandidos na frente de uma igreja batista
ao sair de um culto – ele e dezenas de amigos e familiares morrem. Então, um
homem chega, estica a mão para Petey e o leva ao inferno, para ressuscitá-lo e
fazer uma proposta de uma nova vida. Ele então renasce com um terno
absurdamente invocado e uma bengala mística, como se fosse um cajado com poderes,
é devolvido para a Terra, porém terá de se casar com a filha do diabo, uma
mulher horrenda. ‘O genro do diabo’ reúne os elementos de vários gêneros
absorvidos pela Blaxploitation – artes marciais e kung fu que estavam na moda
no cinema americano da época, influenciado por Bruce Lee e pela
‘Bruceploitation’; o cinema de máfia, como em ‘Dolemite’, o terror sobrenatural
e satânico etc. E há momentos sublimes musicais, com a trilha de Mary Love,
cantora de soul e gospel, que performa quatro canções, incluindo a dos
letreiros iniciais, ‘Petey Wheatstraw’.

Os filmes com Rudy Ray
Moore e a Blaxploitation como um todo inovou o cinema, diversificou temas e
lutou contra o preconceito racial abrindo portas para pretos e pretas. A
Blaxploitation ressignificou fitas de máfia, como ‘O chefão de Nova York’
(1973), filmes de terror com ‘Blacula’ (1972) e ‘Blackenstein’ (1973), musicais
etc. com inovações técnicas, figurinos exuberantes que foram marcadores de
tempo, com gente usando boca de sino e ternos roxos, cabelões black power e
mulheres de roupa sexy.
Mais sobre Rudy
Rudy Ray Moore ganhou três
apelidos durante a carreira: ‘Rei da Blaxploitation’, ‘Rei do entretenimento
underground’, ambas as alcunhas devido a seus filmes B de ação vulgares, rudes
e violentos, e ‘Padrinho do Rap’, por ter gravado 30 álbuns com músicas de rap
contendo pregações cômicas e que estão nos créditos de parte de seus filmes -
tendo influenciado Snoop Dogg e Blowfly, por exemplo.
Atuou em 18 filmes; além
dos já citados, fez ‘The Monkey Hu$tle’ (1976), ao lado de Yaphet Kotto, ‘Disco
godfather’ (1979), ‘Penitentiary II’ (1982) e ‘Ricas e gloriosas’ (1997), com
Halle Berry. Voltaria a interpretar Dolemite, seu personagem mais famoso, em clipes
musicais para diversos rappers, como Snoop Dogg, no filme para home vídeo
‘Shaolin Dolemite’ (1999) e no final de carreira em ‘O retorno de Dolemite’
(2002).
Ator talentoso e
virtuoso, Moore morreu em 2008, aos 81 anos, de complicações da diabetes.
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