domingo, 21 de maio de 2023

Cine Especial


Três aventuras em DVD da Classicline com efeitos especiais de Ray Harryhausen!

A nova viagem de Simbad

Simbad (John Phillip Law) é o príncipe de Bagdá que encontra um mapa do tesouro que o leva a uma viagem fantástica para a ilha de Lemuria. Um feiticeiro do mal lança uma maldição para impedir a missão de Simbad. No caminho o marujo se alia a uma escrava e a um grão-vizir.

A distribuidora Classicline relançou esse mês em DVD duas fitas de aventura dos anos de 1970 com Simbad, lendário marujo e aventureiro de Bagdá cujas origens estão nos contos populares do antigo Oriente Médio. Nos dois filmes presenciamos Simbad viajar pelos sete mares e entrar de cabeça em aventuras fantásticas com princesas encantadas, enfrentando monstros perigosos e até o sobrenatural. Simbad apareceu pela primeira vez em “As mil e uma noites”, coleção de contos árabes compilados e traduzidos a partir do século XVIII, e depois ganhou livros próprios e muitos filmes. Em “A nova viagem de Simbad” (1973), o marujo segue com um mapa do tesouro à ilha de Lemuria. No caminho enfrenta uma estátua vingativa com vários braços, um centauro de um olho só e um grifo, criatura mítica com cabeça de água e garras de leão. O filme tem efeitos visuais primorosos, um chamariz para a aventura se tornar empolgante, assinados por Ray Harryhausen (1920-2013), especializado em stop-motion (criou nos anos de 1950 diversas criaturas memoráveis, como “O monstro do mar” e “O monstro do mar revolto”, além das de “Fúria de titãs”).



Astro nos anos de 1960 e 1970, John Phillip Law (1937-2008) é o Simbad astuto e um dos melhores intérpretes do personagem no cinema – ele esteve em filmes cultuados como “Barbarella” (1968) e “Perigo: Diabolik” (1968).
Rodado na Espanha, tem direção do alemão radicado no Reino Unido Gordon Hessler, que dirigiu muitas fitas de terror, como “O ataúde do morto-vivo” (1969), “Grite, grite outra vez” (1970) e “O uivo da bruxa” (1970).

A nova viagem de Simbad (The golden voyage of Sinbad). EUA/Reino Unido, 1973, 105 minutos. Aventura. Dirigido por Gordon Hessler. Distribuição: Classicline


Simbad e o olho do tigre

Simbad (Patrick Wayne) viaja às terras míticas de Charnak para se casar com a irmã de um príncipe. Só que o príncipe está tomado por uma maldição, enfeitiçado pela própria madrasta. Para romper o feitiço, Simbad é levado para uma série de desafios em uma viagem arriscada.

No cinema, três filmes de Simbad ficaram famosos nos cinemas e mais tarde em sessões da tarde na TV aberta, principalmente nos EUA e no Brasil: “Simbad e a princesa” (1958), “A nova viagem de Simbad” (1973) e “Simbad e o olho do tigre” (1977), os três com efeitos especiais feitos pelo mago Ray Harryhausen (1920-2013), de “Fúria de titãs” (1981). O personagem Simbad nasceu de contos populares no mundo árabe, era um marujo intrépido que partia em viagens grandiosas pelo mundo afora. No cinema Simbad apareceu em fitas clássicas, como “Simbad, o marujo” (1947, interpretado pelo astro da década de 1930 Douglas Fairbanks Jr.), em animação (como “Sinbad – A lenda dos sete mares”, de 2003, da Dreamworks) e até em paródia brasileira, no caso “Simbad, o marujo trapalhão” (1976, com Renato Aragão e Dedé Santana).




“Simbad e o olho do tigre” (1977) é um entretenimento esperto e divertido, com muitas cenas de luta com monstros. Aqui, como se fosse Hércules, Simbad terá um monte de desafios a cumprir para alcançar o amor de sua vida; em todos eles, precisa derrotar ferozes inimigos, como um temível colosso de bronze em forma de touro, um gigante de chifre na testa, um ágil babuíno, demônios com espadas e um enorme tigre com dentes-de-sabre. Dessa vez Simbad é interpretado por Patrick Wayne, de “Jake Grandão” (1971), um papel marcante na carreira do ator. Há participação de Jane Seymour, atriz de “Em algum ligar do passado” (1980) e da série “Dra. Quinn” (1993-1998), e o filme foi rodado em locações na Espanha, Jordânia e Malta, além de estúdios no Reino Unido. Conta ainda com boa direção de Sam Wanamaker, que dirigiu séries de TV e foi um ator muito versátil entre os anos de 1950 e 1990.

Simbad e o olho do tigre (Sinbad and the eye of the tiger). Reino Unido, 1977, 113 minutos. Aventura. Dirigido por Sam Wanamaker. Distribuição: Classicline



Jasão e o velo de ouro

Intrépidos aventureiros liderados pelo grego Jasão (Todd Armstrong) viajam na nau Argo em busca da lã de ouro do carneiro alado Crisómalo. No caminho, o grupo enfrentará monstros e muitos perigos, na terra e no mar.

Retumbante fita de aventura clássica, marcou gerações pelos efeitos visuais que chacoalhavam o público nas poltronas do cinema (o filme é de 1963, exibido centenas de vezes na TV aberta). Filmado em estúdios no Reino Unido e em belíssimas locações em Salerno, na região da Campania, no sul da Itália, o filme, originalmente da Columbia Pictures, revisita o épico poema do grego Apolônio de Rodes “As argonáuticas”, escrito no século III a.C., em que conta a viagem de Jasão, herói da Tessália, por terras desconhecidas para reivindicar seu trono roubado. Para tal, Jasão lidera um bando de intrépidos aventureiros numa nau, chamada Argo (por isso eles são “os argonautas”), explorando desafios para obter o velocino de ouro, uma lã de carneiro que tem o poder de curar doentes. No estilo de Hércules, Jasão realiza tarefas para conseguir o objeto sagrado, lutando com o titã Talos (uma enorme estátua de bronze), harpias (aves de rapina com rosto e corpo de mulher), uma hidra gigante (monstro mitológico com corpo de lagarto e várias cabeças de cobra) até um confronto estrambólico com caveiras protegidas por escudos (cena memorável na História do Cinema). Juntam-se a Jasão e os argonautas o deus dos mares, Netuno, e até a sacerdotisa Medeia!
Novamente os efeitos visuais são primorosos, chamariz para o filme, todos em stop-motion, assinados pelo mago Ray Harryhausen, que criou criaturas famosas do cinema, de filmes como “A vinte milhões de léguas da Terra” (1960), “A ilha misteriosa” (1961) e “O vale de Gwangi” (1969).




Com roteiro de Beverley Cross, criador de ótimas histórias de aventura para o cinema, como “Os legendários vikings” (1964), “Gengis Khan” (1965) e “Simbad e o olho do tigre” (1977), tem direção charmosa de Don Chaffey, de “Mil séculos antes de cristo” (1966). Pontos altos também: a trilha de Bernard Herrmann, de Taxi driver” (1976), e a fotografia de Wilkie Cooper, de “Pavor nos bastidores” (1950).

Jasão e o velo de ouro (Jason and the Argonauts). EUA/Reino Unido, 1963, 103 minutos. Aventura. Dirigido por Don Chaffey. Distribuição: Classicline

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Resenha Especial


Resenha do filme "Amargo regresso" (1978), escrita especialmente para o livro "Nova Hollywood - Filmes essenciais do movimento", lançado pela Versátil Home Video em abril de 2023. Livro disponível para venda no site da Versátil, em https://www.versatilhv.com.br/produto/livro-o-cinema-da-nova-hollywood-filmes-essenciais-do-movimento/5437487

Você voltaria ao Vietnã?

Na ala de um hospital onde estão feridos de guerra, um grupo de ex-combatentes do Vietnã joga bilhar. Dois ou três estão em cadeira de rodas, outros na maca. Até que um deles lança a pergunta que abre um duro debate: “Você voltaria ao Vietnã?”. A discussão é acalorada, nunca se chega a um consenso. O sargento Luke Martin (Jon Voight) apenas escuta os pontos de vista dos colegas e paulatinamente fica imóvel, com olhar vago, para baixo, para o nada.
A descrição acima é a abertura de um dos filmes mais notórios da Nova Hollywood, talvez o mais comentado da carreira de Hal Ashby e que bem retrata os soldados americanos que voltaram com sequelas da infame guerra do Vietnã.
Muitos filmes, principalmente os realizados nos Estados Unidos, trataram dos fuzileiros no campo de guerra em solo vietnamita, com enfoque nos homens com nervos de aço atirando para matar, como “Os rapazes da Companhia C” (1978), “Rambo II – A missão” (1985), “Platoon” (1986), “Nascido para matar” (1987) e “Comando de heróis” (1989). Já as produções que falam do retorno dos soldados dessa guerra injusta, cruel e complexa são escassas. Três obras são fundamentais nesse segundo tema: “Amargo regresso” (1978), “O franco atirador” (1978) e “Nascido em 4 de julho” (1989) – o primeiro foi lançado em fevereiro de 1978, enquanto o segundo saiu em dezembro do mesmo ano, e entre “Amargo regresso” e “Nascido em 4 de julho” há uma série de convergências e semelhanças, que vou detalhar em outro tópico.
“Amargo regresso” se passa em 1968, ano crucial da guerra, pois se evidenciavam avanços de paz para o fim do conflito – a Guerra do Vietnã começou em 1955 e se estendeu até 1975, considerada uma guerra desproporcional e insana, que matou 58 mil americanos e 1,1 milhão de vietnamitas e vietcongues (há historiadores que defendem que o número de vietnamitas mortos pode chegar a 3,5 milhões). Foi a guerra do temível napalm, do destruidor fósforo branco e do ardiloso agente laranja, no meio das selvas e áreas alagadas.



Só que “Amargo regresso” não trata de nada disso. Os personagens que combateram na guerra já estão de volta. A perspectiva é outra. É o retorno dos chamados “sequelados”, sejam os que tiveram pernas amputadas ou que apresentavam problemas motores, ou mesmo os que voltavam traumatizados, com processos de alucinação e depressão graves, que enlouqueciam nos corredores dos antigos manicômios.
Na história, conhecemos o sargento citado anteriormente, Luke Martin (Jon Voight), que ficou paraplégico na guerra. Ele está no hospital, aos cuidados de uma enfermeira, Sally (Jane Fonda), cujo marido, o oficial da Marinha Bob Hyde (Bruce Dern), ainda não regressou do Vietnã. Sally e Luke se apaixonam, iniciam um relacionamento às escondidas, até que Bob retorna, o que irá revirar a vida dos três.
O trio trava uma guerra particular, dentro de uma bolha de complexidades. Todos são impactados por uma mudança drástica de vida e trajetória. Bob está atormentado, queria que a guerra fosse de outro jeito, não aceita a derrota e aos poucos descobre a traição da esposa; Sally está emocionalmente entregue ao amante, tem de se dividir entre dois homens de comportamentos distintos; e Luke, que sem poder mexer-se da cintura para baixo, precisa se adequar a uma nova realidade em sua cadeira de rodas.
O personagem de Luke, assim com o de Sally e Bob, têm muitas camadas. Luke, que é um símbolo da sobrevivência de uma guerra, representa também as barreiras e os preconceitos que os deficientes físicos encontravam. Há cenas espaçadas ao longo do longa-metragem em que Luke se vê em dificuldades para se locomover em espaços públicos, e na sequência do supermercado, por exemplo, é alvo de pessoas sem empatia, com olhares “tortos” sobre ele. Ainda no mercado o personagem não consegue empurrar o carrinho de compras e nem passar pelos corredores estreitos, até que três crianças o ajudam. O filme menciona de forma rápida, mas esperta e até crítica, a questão da acessibilidade.


Há outras cenas belíssimas: ainda nessa do mercado, Luke põe uma das crianças no colo, na cadeira de rodas, e anda pelos corredores; o suicídio de um ex-combatente atormentado, que injeta ar na veia do braço com uma seringa, enquanto os colegas cadeirantes não conseguem abrir a porta para salvá-lo; a de Sally no colo de Luke, dando voltas na cadeira de rodas pelo hospital (sequência que se transformou na capa do filme no Brasil e nos Estados Unidos); a transa de Luke e Sally, com closes íntimos iluminados pela fotografia estonteante e naturalista de Haskell Wexler, e com direito a uma sutil cena de sexo oral, que encabulou a Motion Picture Association a ponto de a associação classificar o filme como R-rating (abaixo falo mais nas “curiosidades”); e a do encontro derradeiro entre Sally e Luke com Bob, que carrega consigo um fuzil com baioneta.
A trilha sonora é de uma delicadeza ímpar. Ela ajuda a compor o drama que aos poucos assume ares românticos e discute temas como readaptação, as consequências da guerra, o amor, os novos encontros da vida. Músicas notórias da metade dos anos de 1960 (já que o filme se passa em 1968) embalam os personagens em suas andanças, como “Out of time” (de Rolling Stones), “Bookends” (de Simon & Garfunkel), “Follow” (de Richie Havens) e “Born to be wild” (de Steppenwolf), “For what it's worth” (de Buffalo Springfield) e “Once I was” (de Tim Buckley).
“Amargo regresso” fez muito sentido para a época e ainda hoje continua humanista, com mensagem antiguerra/antibélica.

O roteiro e a construção de Luke Martin

O personagem Luke Martin foi inspirado em Ron Kovic (1946-), fuzileiro norte-americano que serviu o Vietnã. Aos 22 anos, em 1968, quando liderava um ataque a uma aldeia no norte do Vietnã, levou um tiro que ocasionou em uma lesão medular, que o paralisou do peito às pernas. Um de seus colegas tentou salvá-lo, mas morreu baleado. Ficou por uma semana em uma enfermaria, recuperou-se e depois virou escritor, além de se engajar em movimentos ativistas pela paz mundial (até hoje participa de encontros e manifestações dessa natureza), por isso já foi preso uma dezena de vezes em protestos políticos. Em 1976 publicou seu livro de memórias sobre o Vietnã que se tornaria emblemático a ponto de ganhar versão para cinema: “Nascido em 4 de julho”, exímio retrato das consequências dessa guerra infernal para os que foram lá lutar – Oliver Stone, que lutou no Vietnã, escreveu o roteiro baseado no livro e fez um punhado de longas-metragens sobre o tema, como “Platoon” (1986) e “Entre o céu a e terra” (1993).  Quem dá vida a Ron Kovic em “Nascido em 4 de julho” é Tom Cruise, num papel magistral que lhe rendeu a primeira indicação ao Oscar.


Jane Fonda conheceu Ron Kovic em protestos e se tornaram amigos (a atriz há mais de 50 anos é ativista e luta por diversas causas, de movimentos feministas àqueles contra a guerra e também àqueles que tratam da crise climática). Daí surgiu a ideia do filme (Jane era influente na indústria do cinema, já tinha um Oscar e era filha do imponente ator Henry Fonda). Jane pediu à roteirista Nancy Dowd, de “Vale tudo” (1977), uma história romântica no contexto da Guerra do Vietnã. Então Nancy bolou o argumento e esboçou um roteiro de 250 páginas, apresentando-o a Jane. O elenco foi selecionado, havia tudo preparado para as gravações, e o diretor seria John Schlesinger (de “Perdidos na noite”). Porém o projeto não seguiu, porque o roteiro era considerado polêmico demais, com forte comentário político (a guerra havia terminado há menos de três anos, e ainda dividia a opinião pública). O produtor Jerome Hellman e o roteirista Waldo Salt, que trabalharam juntos em “Perdidos na noite” (1969), chamaram Jon Voight, também de “Perdidos”, para uma reunião. O filme sairia, no entanto o roteiro de Nancy Dowd sofreria mudanças. Waldo Salt reescreveu o texto com Robert C. Jones, montador indicado a três Oscars, de filmes como “Adivinhe quem vem para jantar” (1967) e “Love story: Uma história de amor” (1970) – Jones iria supervisionar também, pois serviu no Vietnã e conheceu a guerra de perto. E por fim, chegaria Hal Ashby, o novo diretor em vista para o projeto, que vinha de fitas premiadas e elogiadas por público e pela crítica, como “Ensina-me a viver” (1971), “A última missão” (1973) e “Shampoo” (1975). A ideia central da história permaneceu, retiraram os aspectos políticos, e fixaram a trama nas dificuldades dos veteranos que voltavam da guerra.

Curiosidades da produção

- Três atores foram cotados para o papel de Luke Martin antes de Jon Voight: Sylvester Stallone, Jack Nicholson e Al Pacino.

- O filme custou U$ 3 milhões e rendeu U$ 32,6 milhões de bilheteria, um bom número para um drama naquela época.

- Jon Voight conta no making of que acompanha o filme “Amargo regresso” em DVD, lançado pela Versátil, que o longa presta um tributo aos jovens que estiveram no Vietnã, e assim o cinema serviria para uma espécie de cura aos sobreviventes.

- A cena de abertura, dos veteranos conversando enquanto jogam bilhar, não estava no script original. São seis veteranos reais do Vietnã que ficaram paraplégicos, e nessa sequência eles trazem seus pontos de vista sobre a guerra – Jon Voight é o único ator em cena, e apenas ouve enquanto eles conversam, sem opinar.

- Jon Voight conta no making of que para representar bem o papel do sargento paraplégico, treinou em cadeira de rodas atlética com um time de basquete de cadeirantes em Long Beach. Diz que passou a fazer tudo por meses com a cadeira de rodas, para se acostumar e absorver o máximo de realidade de um deficiente. Conta que aprendeu a ver a dor, as dificuldades e a rotina dos cadeirantes.

- O filme recebeu censura R-rating na época, por conter uma cena de sexo oral entre Jon Voight e Jane Fonda - mesmo sem ser explícita ou aparecer algum personagem nu total, a Motion Picture Association apontava “conteúdo sexual”, ou seja, o filme era para maiores de 17 anos.

- Originalmente da MGM, “Amargo regresso” venceu três Oscars, de melhor atriz para Jane Fonda, melhor ator para Jon Voight e melhor roteiro original - e indicado ainda a cinco outros no Oscar de 1979: melhor filme, ator coadjuvante para Bruce Dern, atriz coadjuvante para Penelope Milford, diretor e edição; Voight ganhou o de ator no Festival de Cannes (o filme concorreu à Palma de Ouro), e tanto ele quanto Jane levaram os prêmios de ator e atriz de drama no Globo de Ouro.




Capa, sumário e texto de "Amargo regresso" no livro da Versátil

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Resenha Especial



Resenha do filme "Possessão" (1981), escrita especialmente para o livro "Obras-primas do terror - Treze filmes essenciais da coleção", lançado pela Versátil Home Video em março de 2023. Livro disponível para venda no site da Versátil, em https://www.versatilhv.com.br/produto/livro-obras-primas-do-terror-treze-filmes-essenciais-da-colecao/5430961

“Possessão”: o horror que ronda o casamento em ruínas

Quando apresentado ao público pela primeira vez, no Festival de Cannes de 1981, em 25 de maio, “Possessão” (1981) levou parte dos espectadores à euforia, enquanto outra desviou o olhar das cenas mais grotescas e chocantes, vaiando o filme do ucraniano/polonês Andrzej Zulawski. Naquele noite, havia expectativa de o filme arrancar boas críticas dos presentes e também da crítica, porém isso não ocorreu. Na época, “Possessão” foi mal interpretado, tido como uma obra rebelde, com imagens polêmicas que beiravam a repulsa pelo conteúdo de sangue explícito, momentos escatológicos e estranhos demais, até uma cena de sexo entre uma mulher e uma criatura gosmenta. O festival acabou, o filme foi lançado poucos cinemas, em um pequeno circuito em cerca de 30 países, e rapidamente tornou-se cult – o fato se repetiria anos depois com o home vídeo e mais adiante com o dvd, em que muita gente teve acesso ao filme.
É uma obra difícil e ao mesmo tempo a mais notória do universo cinematográfico do sempre controverso diretor Andrzej Zulawski (1940-2016). Escreveu o roteiro durante o processo de seu divórcio, com colaboração do romancista norte-americano Frederich Tuten. Por isso, há uma gama de elementos autobiográficos do cineasta, que foca o desespero de dois personagens: a de mulher desiludida com o casamento, que foge em busca de novos parceiros, e a do marido abandonado, numa busca infernal por ela, na tentativa de trazê-la de volta para casa. Essa é a premissa básica de “Possessão”, que é um drama doloroso, porém com ganchos do cinema de horror, um horror mais psicológico – há sim imagens violentas, de mortes brutais e sangue vivo, e ainda monstros, no entanto isso tudo é secundário no teor desse filme sobre casamento em ruínas.



A francesa Isabelle Adjani, de “Nosfertu, o vampiro da noite” (1979) e “A rainha Margot” (1994), interpreta Anna, essa mulher que está prestes a explodir e não vê mais sentido na vida a dois. Por isso, acaba escapando vez ou outra, e aos poucos entendemos que ela procura outros homens. O marido, Mark, papel do neozelandês Sam Neill, de “Terror a bordo” (1989) e “Jurassic Park – O parque dos dinossauros” (1993) – repare que o filme é bem eclético, com atores e diretor de diversos países, e “Possessão” é uma coprodução França e Alemanha Ocidental, percebe a mudança de comportamento dela, a questiona, chegam a brigar e quando o divórcio é sugerido, ele não aceita o fim do relacionamento, tanto por amar Anna quanto pensando no pequeno filho que ambos têm. Sufocada, Anna foge, e Mark passa dias perambulando pelas ruas para encontrá-la. Sufocada, ela adoece, passa a ter momentos de fúrias, e o marido também. Mark descobre um dos casos da esposa, com Heinrich (Heinz Bennett - de “O último metrô”, de 1974, e “O ovo da serpente”, de 1977), então começa a vigiá-lo e a se corresponder com a mãe do cidadão. Até que Anna frequentemente é vista numa região degradada, com edifícios antigos, descascados, e sem moradores nos arredores. É num dos quartos decrépitos de um dos prédios que surge um caso inesperado de Anna, com uma criatura com rabo e traços humanos. Ela se deita com esse ser insaciável, para longas tardes e noites de sexo. A pergunta fica e, como espectadores, somos sempre indagados: o que está acontecendo com Anna e com Mark?
Os filmes de Zulawski dialogam com países em guerra, divididos e invadidos, com personagens sufocados em constante alucinação, e o diretor ainda insere ares profanos – eu vejo “Possessão” como a última parte de uma trilogia de filmes vendidos como “terror”, mas que são dramas contundentes e simbólicos, que trazem o horror psicológico como forma de questionar estruturas, sistemas e identidades; trilogia porque começaria com “A terça parte da noite” (1971), que se passa na Polônia ocupada pelos nazistas e tem como protagonista um jovem infectado com tifo que sofre devaneios quando se muda para a casa de uma mulher grávida parecida com a esposa morta; no ano seguinte viria “O diabo” (1972), filme banido da Polônia, com trama na Polônia invadida pelos prussianos em 1793 e lá um prisioneiro político segue um desconhecido que o apresenta a um mundo dominado pelo caos e por degradações cruéis; e finalmente “Possessão”, cuja história é na Guerra Fria, na Berlim dividida (o filme não deixa claro onde e quando se passa a trama, mas se percebem nomes alemães, como Anna, Heinrich, Zimmerman e Margit, por exemplo). Os três filmes têm semelhanças no roteiro, na construção dos personagens, nos enquadramentos e em outros pontos técnicos.
Zulawski gera em nós, espectadores, um incômodo permanente devido ao enquadramento, que joga a câmera no rosto dos personagens e vai seguindo com eles atrás, formando imagens corridas, trepidadas, em constante movimento. Há plongée, contraplongée, os personagens ficam confinados em lugares fechados, sempre com as paredes apertadas (uma metáfora da tensão do casamento, do aprisionamento do lar), para trazer à tona a alma de uma mulher ferida e desiludida com o marido, que aos poucos perde a sanidade a ponto de cometer crimes. Numa cena emblemática, e a mais lembrada, Anna tem um ataque de fúria no metrô vazio, como se fosse uma possessão, onde destrói as sacolas de compras do mercado na parede, estilhaçando garrafas de leite. Debate-se na parede e no chão, até sangrar por todos os poros e orifícios, numa espécie de aborto. É uma sequência que choca, constrange, de quase 3 minutos, de pura gritaria e torpor (a banda de trip hop inglesa Massive Attack adaptou a cena para o clipe da música “Voodoo in my blood”, em 2016, com Rosamund Pike na pele da personagem, com vestido parecido e tendo um ataque no metrô, enquanto é controlada por uma bola robótica voadora). Isabelle Adjani conta que ficou perturbada durante o processo de criação da personagem, demorou anos para superar Anna. Na época estava no auge da carreira e da beleza e ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes pelo trabalho em “Possessão” – na verdade, ela ganhou dois em Cannes, também pelo papel de Marya, em “Quarteto de paixão” (1981).




Rodado inteiramente em Berlim Ocidental (lembrando que era Guerra Fria, e Berlim Oriental estava barrada pelo muro), há muitas cenas que trazem o contraste da cidade moderna (quando as sequências são no bonito aparamento de Mark) com a parte decadente (onde Anna se encontra com o monstro – essas cenas foram rodadas no bairro turco de Kreuzberg, uma área devastada). São três aparições do monstro, bem rápidas, que proporcionam um choque visual imediato, devido às poéticas do horror contemporâneo – o efeito se dá graças ao trabalho do mestre em efeitos visuais Carlo Rambaldi, criador de “Alien, o oitavo passageiro” (1979) e “E.T. – O extraterrestre” (1982), pelos quais ganhou o Oscar na categoria.
Banido do Reino Unido, lá tachado de “filme nasty” e só liberado pelo British Board of Film Classification em 1999, foi censurado nos Estados Unidos também, saindo no mercado com quase 40 minutos a menos, em que foram retiradas as cenas de violência e depravação.
Há outras simbologias e poéticas de linguagem no perturbador filme de Zulawski. Quando assume aspecto de thriller de espionagem, da metade com a aparição de outra figura elementar, a da professora do filho pequeno (a mesma Isabelle Adjani), até o desfecho com as sirenes e explosões, o diretor faz um comentário crítico e social sobre a Guerra Fria, sobre o medo do ataque nuclear que rondava o pensamento de muita gente. Grande parte das locações estava a 10 metros do muro de Berlim, e conta-se que a equipe técnica era constantemente vigiada pela polícia do Oriente, ou seja, do outro lado do muro, no entanto havia aprovação e respaldo das gravações pelo Senado de Berlim.
No documentário “The other side of the wall: The making of ‘Possession’”, de 2011, dirigido por Daniel Bird (que está como extra do filme “Possessão” no box Obras-primas do cinema - Volume 11), o diretor Zulawksi, além de contar sobre o seu processo de divórcio que inspirou a ideia do filme, narra sobre o aspecto político da obra: um diretor que viveu sob a perseguição do regime comunista, viu a sovietização da Polônia e os rumos atrozes a que seu país natal foi levado. Discute, no documentário, muito sobre o mal espalhado ao redor dos personagens, o mal que espreita e vigia, e muito se deve às consequências do momento político da Guerra Fria entre os anos de 1950 e 1980. O muro de Berlim aparece em vários lances, e há cenas da Berlim Oriental toda destruída, como forma de relacionar a ideia de ruína arquitetônica com a decomposição da alma dos dois personagens centrais da história. E aliado a isso está a criação de todo um clima de desconfiança, medo e agonia entre as figuras do filme.
Zulawski conta ainda no documentário que “Possessão” teve vaias e aplausos em Cannes, dividiu o público e a crítica, e não teve a repercussão como esperado. Relata que pouca gente entendeu o sentido da obra, do que ele quis realmente dizer (é complexo até hoje). A Palma de Ouro foi para outro filme de cunho político, “O homem de ferro”, de Andrzej Wajda, e Zulawski afirma que ficou feliz pelo prêmio a Wajda.
“Possessão” tem uma trilha sonora moderna e sinistra, fundamental para o clima de estranheza da trama, assinada pelo polonês Andrzej Korzynski, com quem o diretor Zulawski havia trabalhado em “Globo de prata” (1988), “A fidelidade” (2000) e “Cosmos” (2015) – ele usa sons de objetos tilintando e assovios que arrepiam!
Quem assina a produção é uma mulher, a francesa Marie-Laure Reyre, de “Olivier, Olivier” (1992), que com coragem e muita audácia fez de “Possessão” se transformar em uma obra única, complexa, sugestiva e altamente criativa.




Capa, sumário e texto de "Possessão" no livro da Versátil

domingo, 14 de maio de 2023

Resenha Especial


Resenha do filme "Quem matou Rosemary?" (1981), escrita especialmente para o livro "Slashers - 11 filmes essenciais da coleção", lançado pela Versátil Home Video em novembro de 2022. Livro disponível para venda no site da Versátil, em https://www.versatilhv.com.br/produto/livro-slashers-onze-filmes-essenciais-da-colecao/5393997

Medo e terror em Avalon Bay

É noite de formatura na escola feminina de Avalon Bay, em New Jersey. A festa é minuciosamente preparada pela comunidade, para receber formandos, familiares, professores e amigos. No mesmo local, há 35 anos, uma garota chamada Rosemary e seu namorado foram brutalmente assassinados. O assassino fugiu, o crime nunca foi resolvido, e aquele fato marcou a memória das pessoas. À medida que a formatura se aproxima, o psicopata de décadas atrás volta a atacar os jovens em uma noite de medo e tensão.
Essa é a trama central de “Quem matou Rosemary?”, um slasher icônico do início dos anos 80 e um dos mais violentos já produzidos no cinema americano. O filme foi lançado exatamente no ano de ouro do cinema slasher, 1981, um período em que os fãs de terror deliraram com os melhores exemplares desse subgênero. São fitas a perder de vista produzidas em 1981: “Sexta-feira 13 - Parte 2” (de Steve Miner), “Chamas da morte” (de Tony Maylam – também conhecido como “A vingança de Cropsy”), “Feliz aniversário para mim” (de J. Lee Thompson), “Halloween II – O pesadelo continua!” (de Rick Rosenthal), “Noite infernal” (de Tom DeSimone), “Aniversário sangrento” (de Ed Hunt), “A hora das sombras” (de Jimmy Huston), “Pouco antes do amanhecer” (de Jeff Lieberman), “Escola noturna” (de Ken Hughes), “Olhos assassinos” (de Ken Wiederhorn) e o the best one, “Dia dos Namorados macabro” (de George Mihalka). Cada um com suas qualidades e diferenças, há slasher com serial killer mascarado, outros com pessoas deformadas em busca de vingança etc.
“Quem matou Rosemary?” abre com duas cenas distintas em preto-e-branco, mas que dialogam: a primeira, de um antigo cinejornal, sobre o fim da Segunda Guerra Mundial, com soldados combatentes retornando da Europa em navios lotados - e em breve se encontrarão com suas famílias. Na sequência, aparece uma carta romântica escrita por Rosemary. O ano é 1945, e em Avalon Bay haverá uma badalada festa de formatura onde parte dos soldados festejarão com seus grupos. Rosemary também está lá, com um namoradinho em um gazebo. Sozinhos, conversam até que alguém se aproxima. A câmera capta pormenores do desconhecido, em que se vê botas e uma farda camuflada do exército. Quando Rosemary abraça seu affair, uma forquilha pontiaguda atravessa o corpo dos dois, e o sangue escorre veloz. O assassino estica uma rosa e a deposita na mão de Rosemary. O tempo passa, e estamos em 1980, na mesma Avalon Bay, onde haverá outra festa de formatura. O assassino fardado e mascarado pega uma faca de caça, coloca na bainha e junta a forquilha para novos assassinatos. Quem é ele e por que está cometendo os crimes?
Ao longo do filme juntamos pistas para descobrir a identidade do sádico serial killer que mata com fúria, sem pestanejar, no melhor estilo “Whodunit” (“Quem fez isso”, “Quem matou”). O rosto dele só será revelado na cena final (inclusive uma cena bem forte). Até lá uma série de mortes violentas será cometida. O gore corre solto, com momentos notórios – a sequência do banho, por exemplo, ficou famosa, é assustadora e traz todo um clima de tensão.
Por falar em gore e cenas sanguinárias, elas são convincentes, dado o grau de realismo da maquiagem e dos efeitos, assinados por Tom Savini, mestre no assunto desde os anos 70 – Savini, que trabalhou como ator em “Um drink no inferno” (1996), fez a maquiagem de “Despertar dos mortos” (1978) e de outros slashers como “Sexta-feira 13” (1980), “O maníaco” (1980) e “Noite de pânico” (1982).




A direção conduzida por Joseph Zito, diretor de “Sexta-feira 13 – Parte 4: O capítulo final” (1984) e de “Braddock: O supercomando” (1984), é de um tom sombrio e de angústia, ele investe pouco no humor, foca no suspense e até no terror psicológico, para que o público possa entrar na mente do assassino, ver o lado doentio dele e “entender” as razões do assassinato. Zito também assina como produtor, ao lado de David Streit, produtor executivo de “A experiência” (1995).
O elenco reúne atores novatos da época, como Vicky Dawson, de “A cara do pai” (1981), Christopher Goutman e Cindy Weintraub, e participação de dois veteranos (o cinema slasher costumava convidar atores e atrizes de peso para puxar público além dos jovens), Farley Granger – que esteve em dois filmaços de Alfred Hitchcock, “Festim diabólico” (1948) e “Pacto sinistro” (1951), e Lawrence Tierney, de “Nascido para matar” (1947) e “Cães de aluguel” (1992).
Até pouco tempo atrás a única cópia disponível de “Quem matou Rosemary?” no Brasil era da própria Universal Pictures, com metragem menor que a exibida nos cinemas da época (a metragem desse DVD era de 84 minutos, editada devido à violência). Em 2019, a Versátil distribuiu o filme na versão original de cinema, sem cortes e restaurada, igual à lançada nos Estados Unidos (de 89 minutos), dentro do box “Slashers vol. VI - uma caixa em edição limitada com quatro cards e duas horas de extras, onde acompanham também os filmes “Sombra no escuro” (1979, de Denny Harris), “Prefácio da morte” (1989, de Tibor Takács) e “Popcorn – O pesadelo está de volta” (1991, de Mark Herrier).
Sou fã do cinema slasher desde pequeno, e não posso deixar de recomendar “Quem matou Rosemary?”, um dos melhores do gênero. Um filme de terror bem escrito e assustador, que faz o sangue escorrer pela tela da TV!




Capa, sumário e texto de "Quem matou Rosemary?" no livro da Versátil

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Resenha Especial


Resenha do filme "O padrasto" (1987), escrita especialmente para o livro "Slashers - 11 filmes essenciais da coleção", lançado pela Versátil Home Video em novembro de 2022. Livro disponível para venda no site da Versátil, em https://www.versatilhv.com.br/produto/livro-slashers-onze-filmes-essenciais-da-colecao/5393997


Sob o signo do mal: uma revisão de
O padrasto

Num fundo preto, surgem, um a um, os créditos de O padrasto (1987) com uma cor sugestiva: vermelho sangue. A trilha mistura tons poéticos e sinistros, até que aparece a primeira cena, um travelling que capta, bem no alto, um bairro aparentemente pacato, com as folhas das árvores caindo. De bike, um entregador de jornal faz seu trabalho. A câmera foca uma das casas, que leva o espectador para dentro do local. Vemos a cintura de um homem que coloca objetos em uma maleta. A tranquilidade de quem assiste ao filme é abalada quando as mãos e o rosto do cidadão irrompem sujos de sangue... ele olha para o espelho do banheiro, limpa-se, a pia fica com gotas vermelhas. Corta a barba e entra no banho. Em sequência, coloca uma lente de contato, veste terno e gravata e se transforma num novo homem. Prepara-se para sair de casa, pega a maleta, arruma brinquedos espalhados pelo corredor. Quando desce as escadas, novamente somos impactados com um amontoado de pessoas mortas. Há sangue para todos os cantos da casa, uma verdadeira chacina. Despreocupado, ele sai pela porta da frente, assobiando e recolhe o jornal caído na varanda. O mesmo travelling da abertura acompanha-o andar pela rua, sozinho, revigorado e feliz, rumo ao trabalho. Esse é Jerry Blake (Terry O'Quinn), um sujeito que assassinou a família inteira, trocou de identidade e agora procura uma nova mulher para se casar e formar um lar. A próxima vítima no radar de Blake será Susan (Shelley Hack), que vive de maneira harmoniosa com a filha adolescente, Stephanie (Jill Schoelen). Será que Blake conseguirá realizar outro plano sanguinário?
Esse roteiro objetivo e bem elaborado, com um personagem central complexo, cheio de camadas e baseado em um assassino de verdade que aterrorizou New Jersey nos anos 70 fez com que O padrasto virasse uma fita cultuada pelos fãs de terror. Um filme independente com muitos méritos, inúmeras vezes reprisado na TV aberta e que ganhou continuações e remake.
A figura do padrasto acima de qualquer suspeita, que esconde um lado sombrio, é a chave da trama. O sinistro cidadão toma forma sob a interpretação derradeira do ator Terry O’Quinn, que foi indicado ao Independent Spirit Award pelo papel – ele depois ficaria marcado entre os jovens na série “Lost” (2004-2010) e faria diversos filmes como coadjuvante, como “Os jovens pistoleiros” (1988). No filme, ele carrega traços de psicopata, que alterna constantemente o humor (se porta na frente dos outros como um homem atencioso, boa pinta, só que escondido, extravasa de forma violenta a ponto de ter alucinações e pensar em mortes brutais). Outro papel de destaque é o da jovem Jill Schoelen, dos terrir “Assassinato no colégio” (1989) e “Popcorn: O pesadelo está de volta” (1991), a enteada adolescente de Blake, que suspeita do padrasto, chegando a presenciar um ataque de fúria dele no porão.



Uma outra questão preponderante no filme é uma segunda história que corre paralela e dá todo sentido ao desdobramento da aterrorizante trama: a de um rapaz disposto a descobrir o paradeiro do assassino daquela primeira família, ocorrido um ano antes, contando inclusive com a ajuda de um experiente jornalista. Eles arriscam a própria pele para encontrar Blake, que agora vive com nome diferente em uma região longe dali.
O diretor Joseph Reuben, de “Morte nos sonhos” (1984), faria nos anos 90 pelo menos dois filmes de suspense de sucesso, muitas vezes exibidos na TV aberta, “Dormindo com o inimigo” (1991, com Julia Roberts) e “O anjo malvado” (1993, com Macaulay Culkin). Ele soube aqui conduzir uma obra “de gênero”, com todas as qualidades do chamado slasher: cenas sangrentas, mortes violentas, clima de terror no ar. Apesar de não ser um exemplar do slasher tradicional, por ter menos mortes que o habitual, o filme explora uma dimensão mais psicológica do protagonista, ao invadir a mente desse homem insano, impulsivo e desequilibrado. Também não é o slasher na linha do whodunit (“Who do it?” ou “Quem matou”), em que se descobre a identidade do serial killer somente nos minutos finais. Sabemos desde o início que Blake é o criminoso, e ele não usa máscaras como os matadores slasherianos. Por isso O padrasto tem um diferencial ao aproximar Blake a um cidadão comum, um assassino infiltrado na sociedade, no meio de nós, e não precisa se mascarar para cometer atrocidades. Blake pode ser qualquer um, pode se disfarçar de bom homem e na calada da noite, de maneira sorrateira, matar sem culpa. Talvez isso é o que dê mais medo na personalidade de Jerry Blake. Destaco que são poucas, mas bem realizadas sequências de morte, com um pontual suspense, embutido em todos os momentos.
O roteiro foi escrito a seis mãos, por Brian Garfield, escritor de romances que viraram fitas de ação, como “Desejo de matar” (1974) e “Sentença de morte” (2007), Donald E. Westlake - indicado ao Oscar de melhor roteiro por “Os imorais” (1990), cujo argumento original de O padrasto é dele, e Carolyn Lefcourt (que não fez nada mais relevante). O roteiro teve uma inspiração real: uma parte da vida de John List (1925-2008), assassino em série que em 1971 trucidou a família, composta pela esposa, a mãe e os três filhos, na cidade de Westfield, em Nova Jersey. E depois fugiu, usando identidade falsa e arrumando outra família. List integra a lista dos piores criminosos da história dos Estados Unidos. Ele só foi descoberto 17 anos depois, em 1989, em decorrência de uma reportagem de TV (como ocorre no filme O padrasto); ao ser preso pela polícia, confessou que tinha novos planos de morte. Ficou na cadeia até morrer, em 2005, então com 82 anos.
O padrasto deu origem a duas continuações: a primeira para o cinema, intitulado “A volta do padrasto” (1989), novamente com Terry O’Quinn, e uma para a TV, “O padrasto: Ele voltou para ficar” (1992), cujo papel foi para o ator Robert Wightman, ator da série “Os Waltons” (1972-1981) e do filme “Gigolô americano” (1980). E teve ainda uma refilmagem bastante inferior, “O padrasto” (2009), com Dylan Walsh, ator de “Congo” (1995) e “A casa do lago” (2006), na pele do assassino.
Filme presente em DVD, em ótima cópia, no box “Slashers volume 11”, juntamente com obras aterrorizantes como “Motel diabólico” (1980), “Incubus” (1981) e “Massacre no colégio” (1986). Para ter em sua coleção e rever quantas vezes quiser!




Capa, sumário e texto de "O padrasto" no livro da Versátil

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Cine Especial



A lenda de Candyman

Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen II) é um reconhecido artista visual que se muda com a namorada para a região de Cabini Green. Três décadas atrás, o lugar foi assombrado pelo espírito de Candyman, um escravo torturado que aparecia para matar aqueles que pronunciassem seu nome cinco vezes. Hoje Cabini Green é um bairro periférico de Chicago que passou pelo processo de gentrificação, recém-habitado por cidadãos de alta classe. McCoy está se acostumando ao novo lugar, até que Candyman retorna para um encontro derradeiro com o artista.

Uma das melhores revisões de filme de terror dos últimos anos, “A lenda de Candyman” (2021) se encaixa tanto como uma continuação quanto um remake do original, “O mistério de Candyman” (1992), que me assombrou muito quando pequeno. Agora a jovem diretora Nia DaCosta, que fez antes o drama/policial “Passando dos limites” (2018, com Tessa Thompson e Lily James), dá um novo tom e novas críticas sociais para contar a história de um artista visual que nasceu pobre e ficou rico e vai morar numa região gentrificada de Chicago, palco dos assassinatos pelo espírito de Candyman tempos atrás, um escravo com um gancho na mão. O ator Yahya Abdul-Mateen II, de “Aquaman” (2018) e “Nós” (2019), acerta em cheio com sua interpretação dupla do protagonista, que vai enlouquecendo ao longo da história, enquanto uma série de crimes brutais ocorre.
O visual do filme (um terror psicológico com forte crítica social) incomoda com suas cores fortes (ótima fotografia de John Guleserian, de “Questão de tempo”, aliada a uma boa direção de arte – destaque para a cena da galeria toda neon, com banhos de sangue), e há uma série de enquadramentos diferenciados, com inversão de imagem, plongée, jogo de espelho etc
É terror, mas é acima de tudo um drama social triste e impactante, que discute uma sociedade racista e ameaçadora – o tema central é a gentrificação em Chicago e suas complicações urbanas e sociais, com a expulsão forçada da população periférica para que o local sirva de espaços modernos e receba população da alta classe. Também se fala de lendas urbanas no gueto, com diálogo abrangente sobre racismo, escravidão e violência policial (é um filme mais profundo que o primeiro, de 1992).





Na abertura vemos a logo ao contrário da Universal ao som da música “Candyman”, cantada por Sammy Davis Jr – que integrou a trilha sonora de “A fantástica fábrica de chocolates” (1971 – lá cantada por Aubrey Woods).
Escrito e produzido por Jordan Peele, de “Corra!” (2017 – em que venceu o Oscar de melhor roteiro original), “Nós” (2019) e “Não! Não olhe!” (2022), hoje um mestre do cinema de horror contemporâneo. Com a colaboração da diretora Nia DaCosta no roteiro, Peele baseou-se no conto “Candyman”, de Clive Barker (originalmente intitulado “The forbidden”, de 1978) e reutilizou ideias do filme “O mistério de Candyman” (1992).
Assisti ao filme duas vezes e pretendo uma terceira revisão.

A lenda de Candyman (Candyman). EUA/Canadá, 2021, 91 minutos. Terror/Drama. Colorido. Dirigido por Nia DaCosta. Distribuição: Universal Pictures

terça-feira, 9 de maio de 2023

Cine Clássico


A ilha misteriosa


Soldados da Guerra Civil Americana fogem em um balão, que acaba caindo em uma ilha do Pacífico. O grupo está em um ambiente inóspito e estranho, enfrentam animais gigantes e conhecem capitão Nemo (Herbert Lom), que vive isolado naquela ilha misteriosa.

Aventura classe A da Columbia Pictures, muitas vezes exibida na TV, que agora pode ser conferida numa boa edição em DVD da Classicline. É a melhor e mais querida adaptação do livro homônimo do escritor francês Julio Verne, autor de obras clássicas consagradas sobre expedições a mundos desconhecidos (como “Viagem ao centro da Terra”) e de humanos lutando contra formas de vida ameaçadoras (como “20.000 léguas submarinas”). O notório personagem Capitão Nemo apareceu em duas histórias de Verne: primeiramente em “20.000 léguas submarinas” e depois, com menor destaque, em “A ilha misteriosa” - chamado de Príncipe Dakkar, é um intelectual, conhecedor dos mares, que cria um submarino, o Nautilus, e acaba se isolando numa ilha fora da civilização, decepcionado com a humanidade e suas atrocidades.
Em “A ilha misteriosa”, um grupo de soldados, numa viagem de balão, cai numa ilha do Pacífico tomado por animais gigantes, como uma galinha, um caranguejo e abelhas. Escapam para sobreviver, até serem socorridos por Capitão Nemo (que aparece somente na meia hora final).




O diretor Cy Endfield, de “Na rota do inferno” (1957) e “Zulu” (1964), realizou uma fita de entretenimento ágil, bem feita e cheia de momentos de fuga e aventuras malucas. A trilha sonora de Bernard Herrmann (de “Taxi driver”) ajuda, assim como os efeitos especiais de Ray Harryhausen, de “Simbad e a princesa” (1958) e “Jasão e o velo de ouro” (1963), sem falar da fotografia paradisíaca de Wilkie Cooper (o filme foi rodado no Reino Unido e grande parte na costa da Espanha, onde seria a ilha).
Michael Craig, de “A cinco passos da morte” (1958), Joan Greenwood, de “As aventuras de Tom Jones” (1964) e Michael Callan, de “Dívida de sangue” (1965), estão no elenco central. Já Herbert Lom, o inspetor Dreyfuss de vários filmes da franquia “A Pantera cor-de-rosa”, faz Nemo, numa participação bem legal. Assistam sem medo de errar!

A ilha misteriosa (Mysterious Island). Reino Unido, 1961, 100 minutos. Ficção científica/Aventura. Colorido. Dirigido por Cy Endfield. Distribuição: Classicline