sábado, 29 de março de 2025

Resenhas especiais

 
Um estranho no lago
 
No verão francês, um grupo de homens de diferentes idades se encontram em um lago escondido para encontros sexuais. Franck (Pierre Deladonchamps) conhece Michel (Christophe Paou), e se apaixonam. Só que Michel tem um passado assombroso, que aos poucos vem à tona, colocando a relação dos dois homens em perigo.
 
Um filme de arte polêmico, para adultos (classificação 18 anos), que gerou muitos comentários em Cannes, quando foi exibido em 2013 e lá ganhou dois prêmios, o Queer Palm (entregue a filmes com temática gay) e o de direção no ‘Um certo olhar’, a principal mostra paralela do festival. O filme é dentro de um mesmo espaço, um lago que serve de ponto de encontros sexuais de homens gays. Eles flertam, sentam nas pedras para conversar sobre a vida e depois adentram uma pequena mata onde transam ao ar livre. O verão é quente, as relações são despudoradas e fugazes, os frequentadores de lá trocam de parceiros ao longo da semana. Tudo acontece na orla do lago e na mata, nunca vemos os personagens fora dali – há apenas uma cena exterior, no estacionamento da entrada do lago, na abertura do filme. O longa conecta-se ao primeiro trabalho do diretor, um curta-metragem chamado ‘Les héros sont immortels’ (1990), com o próprio diretor Alain Guiraudie atuando – é a história de um jovem que vai todas as noites até uma mesma praça encontrar-se com um rapaz, e sentados passam horas conversando. Em ‘Um estranho no lago’, o protagonista Franck, vivido por Pierre Deladonchamps, de ‘Conquistar, amar e viver intensamente’ (2018), também se senta na beira do lago à espera de alguém. Um deles é o carismático personagem do solitário Henri, que acaba de se separar da namorada, diz ser hétero, mas começa a sentir prazer em ver Franck nu - papel do ótimo veterano Patrick d'Assumçao, de ‘Normandia nua’ (2018). De repente chega ao local um jovem atraente, Michel (Christophe Paou, de ‘Como um chef’, de 2012), que é casado; ele sentirá forte atração pelo protagonista, e juntos iniciam um tórrido relacionamento. Um corpo aparece boiando no lago, então a trama assume um lado policial, uma espécie de thriller psicológico, que provoca uma boa guinada no filme. Enquanto o mistério em torno da morte ronda os frequentadores do lugar, Franck e Michel se sentem cada mais atraídos um pelo outro.




É o quarto filme do diretor depois de médias e curtas-metragens, talvez um dos mais sofisticados e especiais dele, com uma história particular do cineasta – na juventude diz ter frequentado um lago de pegação gay na França, e parte dos personagens são inspirados em gente que ele teve contato. Atenção para duas cenas de sexo explícito, bem ousadas, que são provocadoras.
Gravado na Garganta de Verdon, uma região de desfiladeiros, ilhas e cortada pelo rio Verdon, no sudeste da França, local cenograficamente belo, com imagens paradisíacas. Não há trilha sonora alguma, só ouvimos sons de vento e riachos, que foram captados nesse ambiente aberto, o que torna o filme ainda mais misterioso. Tem um final-surpresa e ao mesmo tempo ambíguo.
Dois meses atrás, o novo filme do diretor entrou nos cinemas, ‘Misericórdia’ (2024), comédia dramática com humor negro indicada ao Queer Palm, também com personagens gays e trama ousada – aliás, em seus filmes há sempre gays e momentos inusitados de sexo, como fez em ‘Na vertical’ (2016). Disponível em bluray pela Imovision, com extras no disco, dentre eles um final alternativo - um desfecho mais redondo e menos simbólico que o original. Também está na plataforma online Reserva Imovision.
 
Um estranho no lago (L'inconnu du lac). França, 2013, 100 minutos. Drama/Suspense. Colorido. Dirigido por Alain Guiraudie. Distribuição: Imovision


O Babadook
 
Enlutada pela morte do marido, Amelia (Essie Davis) cuida sozinha do filho pequeno, Samuel (Noah Wiseman). Ela tem depressão, e seu comportamento começa a ser autodestrutivo. Certo dia, aparece em sua casa um livro infantil chamado ‘Sr. Babadook’, e todas as noites ela lê as histórias para Samuel dormir. O garoto fica fissurado pela leitura, só que a mãe percebe que o livro está afetando negativamente o garoto. Até que a misteriosa criatura da obra literária se manifesta como uma entidade maligna, colocando em risco a integridade de Amelia e Samuel.
 
Apontado, pela crítica e pelo público, como um dos filmes de terror mais assustadores daquele ano, 2014, ‘O Babadook’ é uma fita tensa, de dar arrepios na espinha, fugindo do óbvio e do explícito. As coisas são subentendidas, é um filme de atmosfera, com presente clima de angústia e medo, que torna o longa um terror psicológico de primeira linha. Com um ar de filme de arte/cult, tem elementos aproveitados de grandes clássicos do horror, como ‘O iluminado’ (quanto ao enlouquecimento da mãe que aprisiona o filho em casa) e ainda obras do Expressionismo Alemão – em especial ‘O gabinete do Dr. Caligari’ (1920), nas sombras, no adorno e no preto-e-branco da concepção de Babadook. Há poucos, mas eficientes jumpscares, que fazem o coração pular fora do peito.
É um projeto pessoal da diretora australiana Jennifer Kent, que nasceu quase dez anos antes, com o curta-metragem ‘Monstro’ (2005), sobre uma mãe que luta para proteger o filho após um monstro aparecer no armário. Com esse mote original em mãos, Jennifer redimensionou a história para o longa-metragem, apresentando uma mãe viúva e depressiva, que perdeu o marido num acidente de carro. Ela cuida do filho pequeno, de seis anos de idade. Para distrair o menino, começa a ler com ele um estranho livro que encontra na casa onde vivem. É a história de Babadook, uma criatura de chapéu preto e dentes afiados, como se fosse o bicho-papão, que dá lições e faz sutis ameaças. Porém, Babadook não fica só nas páginas – ele sai do livro como uma entidade diabólica, ameaçando mãe e filho.
Não é um terror sangrento, violento, nada disso; aliás, não é só terror:  é um aflitivo drama íntimo, de uma mãe que rejeita o filho, faz torturas psicológicas com ele, como forma de culpá-lo pela morte do esposo - ela estava grávida, a caminho do hospital para dar à luz, quando houve o acidente que vitimou fatalmente o marido. Ou seja, o terror é o da vida real também, do luto, da paranoia, da depressão pós-parto.





Um filme com apenas dois atores em cena, mãe e filho, muito bem interpretados, respectivamente, por Essie Davis, atriz australiana de ‘A verdadeira história de Ned Kelly’ (2019), casada com o diretor Justin Kurzel, e Noah Wiseman, que só fez participações em séries. E preste atenção, ainda mais no final, que é simbólico e trata dos nossos monstros interiores.
Estilizado, cheio de enquadramentos diferentes e uma fotografia formidável, tornou-se cultuado ao longo dos anos. Ganhou prêmios em muitos festivais, foi exibido em Sundance, vitrine do cinema independente, ficou por muito tempo no catálogo da Netflix e recentemente saiu numa luxuosa edição em bluray pela Versátil Home Video – em luva reforçada, com livreto e mais de 1h30 de extras.
 
O Babadook (The Babadook). Austrália/Canadá, 2014, 94 minutos. Terror/Drama. Colorido. Dirigido por Jennifer Kent. Distribuição: Versátil Home Video

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