A
fim de ver um filme cult nessa quarentena? Confira críticas fresquinhas de seis
títulos em DVD lançados pela Obras-primas do Cinema.
Mal do século
Em
1987, no Sul da Califórnia, Carol (Julianne Moore), uma dona de casa de classe
média, desenvolve uma estranha alergia. Nenhum médico detecta as causas da doença.
Ela então recorre à cura em tratamentos não-convencionais.
Um
dos melhores cultmovies de Todd Haynes, que escreveu o roteiro e dirigiu,
baseado num caso verídico. Foi também o primeiro trabalho da atriz Julianne
Moore como protagonista, e que a revelou (havia feito oito filmes até então, tendo
papéis secundários, e sete anos depois voltaria a ser dirigida por Haynes em “Longe
do paraíso”, filme que recebeu quatro indicações ao Oscar, como melhor atriz
para ela e melhor roteiro original, para ele).
Conta
o estranho caso de uma dona de casa arrasada por uma doença do aparelho
respiratório, que provoca alergias pelo corpo inteiro. Sem ajuda médica, e sem saber
onde procurar uma solução palpável, vai a um centro de equilíbrio emocional e
espiritual em busca de reabilitação. Nesse lugar sua vida será outra
completamente diferente.
Misteriosa, com interpretações múltiplas, essa simbólica fita indie critica o consumismo (a protagonista, Carol, fica alérgica aos inúmeros aparelhos de limpeza e objetos de uso diário), dialoga com o estresse do mundo agitado em que vivemos, à dureza de conviver numa
sociedade caótica e machista, e faz uma ponte com o filme anterior do diretor, aliás,
sua estreia no cinema, “Veneno” (1991), um drama de terror que ganhou prêmio do
Júri em Sundance, sobre o mundo adoecido pelo pânico e o estresse. Indo além,
tanto “Veneno” quanto “Mal do século” tratam do terror da Aids, que acometia a
comunidade LGBT nos anos 90 – por isso a alergia no corpo da personagem (na
época, os gays atacaram ambos as obras cinematográficas, por não aceitarem a
personagem branca e não haver nenhuma menção direta a eles).
Haynes
filma sempre com câmera aberta, que distancia os atores do público, sem
transmitir emoções. É uma técnica recorrente em suas obras. Há cenas gravadas
em sua própria casa, também na de familiares – seus pais, irmãos e amigos
próximos aparecem como figurantes.
Indicado
a quatro prêmios no Film Independent Spirit Awards – filme, atriz, diretor e
roteiro, o filme custou apenas U$ 1 milhão. Julianne, que já era magra,
precisou perder cinco quilos para o papel, já que ela emagrece ao longo da
história.
Uma
fita alegórica e aclamada no circuito independente, disponível em DVD pela
Obras-primas do Cinema - no disco tem o primeiro filme de Haynes, o
curta-metragem “O suicídio” (1978), além de uma entrevista com a produtora
Christine Vachon e trailer.
Mal do século (Safe). EUA/Reino Unido, 1995, 118
minutos. Drama. Colorido. Dirigido por Todd Haynes. Distribuição: Obras-primas
do Cinema
Diretor autoritário, Joe Clark (Morgan Freeman) assume
a coordenação de uma escola barra-pesada de Nova Jersey, enfrentando alunos e
professores para tornar a instituição referência de ensino.
Um filme
marcante das sessões da tarde, que passava direto na TV aberta no Brasil, com
um trabalho excepcional de Morgan Freeman e um dos melhores sobre “professor x
aluno”. O irregular diretor John G. Avildsen, ganhador do Oscar por “Rocky – Um
lutador” (1976), criou uma obra notória, muito querida nos Estados Unidos, cujo
roteiro foi escrito por Michael Schiffer, especializado em fitas de ação, como “As
cores da violência” (1988) e “O pacificador” (1997).
No papel principal, com garra e coragem, está Morgan
Freeman, como um ex-professor revolucionário, que agora assume o posto de diretor
de uma escola violenta, a Eastide High School, situada em Paterson, New Jersey.
O local está contaminado por professores estressados, alunos barra-pesada, que quebram
tudo, vendem drogas, outros são usuários de crack, uns são ladrões e assassinos.
No meio do campo minado, ele, um cara autoritário, com métodos pouco ortodoxos
e muito arrogante, vai fundo com pulso firme para colocar ordem na casa – seu objetivo
é tornar a instituição um lugar de paz e fazer com que os estudantes aprendam. Ao
passar das semanas, ele vai adquirindo respeito de todos, muda a visão dos estudantes
e dos professores (o tal Joe Clark é uma figura real, hoje com 81 anos, e inspirou
muitos professores na América do Norte).
Reflete o ensino nas escolas públicas americanas nos
anos 80, de certo aspecto semelhante às do Brasil, onde circulam alunos sem motivação,
cuja realidade é tomada pela criminalidade. Os professores, idem, cercados de dilemas,
medo, sujeitos à violência. Não melhorou tanto assim, ainda temos um longo
caminho pela frente...
Gravado na verdadeira Eastside High School, conta
com a participação de alunos e professores de lá como figurantes.
Nessa
linha de filmes de professor em escolas barra-pesada tivemos bons exemplares –
minha lista de preferência são “Sementes da violência” (1955), “Ao metre com
carinho” (1967), “Um diretor contra todos” (1987), “Mentes perigosas” (1995) e “O
substituto” (dois filmes de mesmo título,
mas de gêneros diferentes: a de ação de 1996, com Tom Berenger, e o drama de
2011, com Adrien Brody).
Em
inglês, “Meu mestre, minha vida” é “Lean on me”, em referência à famosa e
lindíssima música de Bill Withers (que toca no filme, claro), que virou uma
canção-emblema para fortalecer a união entre os negros na sociedade e deles com
os brancos, em pleno início da década de 70.
Meu mestre, minha vida (Lean on me). EUA, 1989, 108 minutos. Drama.
Colorido. Dirigido por John G. Avildsen. Distribuição: Obras-primas do Cinema
Anjos
caídos
Duas
histórias de violência se cruzam pelas ruas de Hong Kong à noite: a de um
assassino profissional e sua parceira, e a de um garoto mudo, assaltante de
lojas, que tem como amiga uma jovem abandonada pelo namorado.
É Kar-Wai
Wong em sua essência, num filme de arte para poucos, que tem uma estética
revolucionária: uma câmera atordoante espia os personagens entre frestas de janelas
e portas; a lente é uma grande ocular (olho de peixe) que distorce rostos, deforma
a realidade; alterna-se a velocidade da gravação, com câmera lenta, depois
avançada; engata closes malucos no rosto dos personagens; e a fotografia noturna
é sedutora, com cores quentes fortíssimas, à base de neon. Com essa técnica feroz,
Wong impressiona ao acompanhar o submundo do crime em Hong Kong, com personagens
marginais, todos eles caminhando sem rumo pela noite vazia. Um matador
profissional e garotas abandonadas figuram seu universo particular para tratar de
temas como solidão e amargura – “Anjos caídos” (1995) é uma espécie de
continuação de “Amores expressos” (1994, em DVD no Brasil pela Classicline), e
em ambos temos o personagem He Zhiwu, aqui o assaltante mudo (é o mesmo ator,
Takeshi Kaneshiro, mas em ‘Amores
expressos’ ele é um policial, e não é mudo, fissurado por latas de abacaxi – em
‘Anjos caídos’ ele ficou mudo depois de comer abacaxi em lata estragado!). Outra
marca autoral de Wong está na trilha sonora romântica considerada brega.
O
diretor ganhou a Palma de Ouro em Cannes por “Felizes juntos” (1997), já foi indicado
em Berlim, Bafta, categorias no Oscar... é sem dúvida um dos mais renomados da
China e Hong Kong – se gostar de “Anjos caídos”, assista, dele, “Dias selvagens”
(1990), “Cinzas do passado – Redux” (1994), “Amor à flor da pele” (2000), “2046:
Os segredos do amor” (2004) e “Um beijo roubado” (2007, rodado nos EUA com
elenco americano, como Jude Law, Natalie Portman e a cantora Norah Jones).
Imperdível!
Acho melhor que o anterior, “Amores expressos”.
Anjos caídos (Do lok tin si). Hong Kong, 1995, 98
minutos. Ação/Drama. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Kar-Wai Wong.
Distribuição: Obras-primas do Cinema
A
mulher e o atirador de facas
Numa
ponte em Paris, Adèle (Vanessa Paradis) é salva do suicídio por Gabor (Daniel
Auteuil). A jovem encontra-se sem rumo, desencantada da vida; ele, um atirador
de facas que trabalha no circo, então a convida para que possam trabalhar juntos.
Ela aceita o desafio de ser modelo de suas performances, e dali nasce uma
intensa amizade entre os dois.
Uma
linda fotografia em preto-e-branco realça a beleza dessa notória fita de arte romântica
sobre duas pessoas solitárias na Paris dos anos 90. É um filme delicado de
sensações, uma poesia visual forte com personagens desalentados. Gira em torno
do atirador de facas em turnê pela Europa com sua musa, uma garota fracassada, que
ele salvou numa noite. Cresce entre eles um jogo tenso e sedutor, quando estão
frente a frente nas performances do circo (o atirador de facas pode matar sem
querer seu alvo). E fora das apresentações o laço entre ambos é irrompível,
ensurdecedor, até que... (assista para saber!).
Concorreu
ao Bafta e ao Globo de Ouro de filme estrangeiro, e Daniel Auteil ganhou o
Cesar de ator – ele é ótimo, versátil, chamo-o de Robert De Niro francês,
devido à semelhança de rosto. Junto com a modelo, atriz e cantora francesa Vanessa
Paradis dá um show, inclusive nas cenas eróticas que já entraram para a história!
Paradis conviveu 14 anos com Johnny Deep, com quem teve dois filhos, dentre
eles a atriz Lily-Rose Deep (de “Além da ilusão” e “O rei”).
Uma
fita charmosa, romântica e que não deixa de ser triste, dirigida por Patrice
Leconte, de “O marido da cabeleireira” (1990) e “Uma passagem para a vida”
(2002).
PS:
Teve outro título no Brasil, com a tradução direta do francês, “A garota sobre
a ponte” (“La fille sur le pont”).
A
mulher e o atirador de facas
(La fille sur le pont). França, 1999, 87 minutos. Drama. Preto-e-branco.
Dirigido por Patrice Leconte. Distribuição: Obras-primas do Cinema
Os últimos embalos da disco
Nos
anos 80, as amigas editoras de Manhattan Alice (Chloë Sevigny) e Charlotte (Kate
Beckinsale) trabalham duro de dia para, à noite, ir a uma discoteca badalada, onde
procuram novas amizades, e se rolar, um amor na pista de dança.
O roteirista
e diretor Whit Stillman, indicado ao
Oscar de melhor roteiro por “Metropolitan” (1990), traça suas memórias de
juventude nesse filme também sobre festas na Nova Iorque de 30 anos atrás. Divertido,
afiado, crítico, ele comenta a mentalidade e os modos de vida dos yuppies (Young
Urban Professional), que eram os jovens profissionais entre os 20 e 40 anos que
predominaram o cenário novaiorquino dos anos 80, aqueles cuja situação
financeira oscilava entre a classe média e a alta, que valorizavam bens
materiais, eram conservadores etc Todos os personagens do filme (homens e
mulheres) são reflexos do autor, yuppies em busca do sucesso em suas profissões,
trabalhando arduamente de dia, para à noite frequentar baladas agitadas. Uma
geração distante da atual, num tempo que ficou para trás... – outro ponto que o
diretor toca é o fim da era das discotecas, por isso o título.
Embalado
por uma trilha dançante dos anos 70 e 80, como “I’m coming out”, “The tide is
high”, “Let’s all chant”, “Everybody dance”, “More, more, more”, “Dolce vita”, o
filme funciona como um estudo social, acerca dos modos e do comportamento de um
grupo de indivíduos.
Stillman voltou a trabalhar com as duas atrizes
daqui, Kate Beckinsale e Chloë Sevigny, no romance de época “Amor & amizade”
(2016).
Os últimos embalos da disco (The last
days of disco). EUA, 1998, 113 minutos. Drama. Colorido. Dirigido por Whit
Stillman. Distribuição: Obras-primas
do Cinema
Documentário
e drama se fundem para contar uma breve história da bruxaria nos mais de três
mil anos de civilização humana.
Obra-prima
do cinema fantástico, produzido entre 1919 e 1921, “Häxan” é uma espécie de
documentário antropológico com ficção (na linha do terror e da fantasia), baseada
em estudos do diretor dinamarquês Benjamin Christensen sobre misticismo, bruxaria
e crenças em espíritos malignos. Mudo e preto-e-branco, intercalando sequências
coloridas à mão, explica, numa linha do tempo e de maneira didática, como os
povos ocidentais e orientais reagiam aos cultos secretos, às chamadas “bruxarias”.
Acompanha povos antigos, como os egípcios e celtas, até os europeus na Idade
Média, sempre mostrando as perseguições e práticas de tortura contra os magos/bruxos
em todos esses períodos. E por fim faz uma analogia ao mundo no século XX – foi
escrito, dirigido e produzido por Benjamin Christensen, que aparece no início como
se contasse a história, ou seja, ele dá o tom de pessoalidade para o filme, como
se defendesse uma tese. Por ser mudo, tem quadros com textos e ilustrações antigas
extraídas de livros – por conter desenhos fortes de perversão sexual e mortes,
sofreu censura na época em vários países.
É considerado
o filme escandinavo mais caro da história, custando dois milhões de coroas
suecas - não é só documentário, tem encenações, gastaram muito com maquiagem, atores,
direção de arte etc).
Por ser
um filme muito velho, existem várias cópias ruins e editadas na internet, porém
esta é a oficial lançada no Brasil, a maior em termos de metragem (106 minutos)
e com melhor imagem (remasterizada, que saiu há poucos meses em DVD em edição
especial pela Obras-primas do Cinema, com luva, card colecionável e diversos
extras, com destaque para a introdução do autor para uma edição de 1941 e uma
versão de 76 minutos narrado por William S. Burroughs). Uma fita raríssima, que
vale ser descoberta!
PS: Häxan
significa “bruxa” na Escandinávia, e em outro contexto, “hermetismo”.
Häxan: A feitiçaria através dos tempos
(Häxan). Suécia, 1922, 106 minutos. Documentário/Terror.
Preto-e-branco/Colorido. Dirigido por Benjamin Christensen. Distribuição: Obras-primas do Cinema
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