terça-feira, 31 de março de 2020

Resenhas Especiais



Sessão documentário

Confira a dica de cinco documentários e uma minissérie em documentário para assistir nessa quarentena.

Um retrato de Woody Allen

Documentário sobre a turnê de Woody Allen e sua banda de jazz pela Europa, em 1996.

Ganhou o prêmio de melhor documentário no Festival de Sundance em 1998 (indicado também ao Grande Prêmio do Júri) esse excelente filme pessoal sobre o cineasta Woody Allen, em que explora o outro lado dele, o de músico. Acompanha a exaustiva turnê de 23 dias dele e da sua banda de jazz, em 1996, onde passaram por 18 cidades (como Madri, Veneza, Paris). Além das ótimas filmagens das apresentações do grupo no palco, a câmera da documentarista Barbara Kopple, duas vezes ganhadora do Oscar - por “Harlan County: Tragédia americana” (1976) e “American dream” (1990), registra imagens únicas e inéditas de Allen, então com 60 anos: de roupão pelos quartos de hotel, toma café da manhã com a esposa Soon-Yi Previn, a relação com os músicos da banda, ele na esteira praticando atividades físicas, passeando de gôndola em Veneza, dando entrevistas a jornalistas, tirando fotos com fãs nas ruas e visitando os pais idosos. Ou seja, um Woody Allen comum, simples como qualquer pessoa, de um jeito que você nunca viu nem verá de novo.
Em estilo confessional, ele também conta curiosidades, com foco na música e nunca no cinema – Allen é um trompetista de primeira linha, criador da “Woody Allen’s Jazz Band”, apaixonado desde garoto pelo jazz de Nova Orleans, que o influenciou.
É um barato total! O mais íntimo retrato dele, ao lado de “Woody Allen: Um documentário” (2012, de Robert B. Weide, este explorando seu trabalho como diretor, ator, produtor e roteirista).
Saiu em DVD há muitos anos na “Coleção Woody Allen”, da Flashstar, com sete filmes do cineasta do final dos anos 90, como “Poderosa Afrodite” e “Poucas e boas”.

Um retrato de Woody Allen (Wild man blues). EUA, 1997, 98 minutos. Documentário. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Barbara Kopple. Distribuição: Flashstar


Meru: O centro do universo

Os alpinistas Conrad Anker, Jimmy Chin e Renan Ozturk partem para o maior desafio de suas vidas: escalar o Meru, no Himalaia, constituído por uma rota mortal, de acesso quase impossível.

Uma injeção de adrenalina e altas emoções nesse documentário de esportes radicais, em que três famosos alpinistas desafiaram os limites e a própria vida ao escalar a “Barbatana do Tubarão”, um paredão de pedras em direção ao pico Meru, no Himalaia (Índia). Na rota desafiadora e mortal, a seis mil metros de altitude, onde muitos alpinistas morreram nos últimos 30 anos, o trio enfrenta falta de suprimentos, dá de cara com tempestades de neve e temperaturas abaixo de zero, para atingir o recorde no mundo das escaladas.
Um grande filme sobre sacrifício, liberdade, obsessão e amizade, com imagens lindíssimas do Himalaia, de brilhar os olhos, e uma aula de montagem.
Ganhou o prêmio Audience no Festival de Sundance, indicado lá ao Grande Prêmio do Júri, e foi dirigido por um dos alpinistas que figuram o doc, Jimmy Chin, junto da esposa, Elizabeth Chai Vasarhelyi – a dupla venceu o Oscar de melhor documentário no ano passado por outro filme sobre escaladas, “Free solo” (da National Geographic).

Meru: O centro do universo (Meru). EUA/Índia, 2015, 90 minutos. Documentário. Colorido. Dirigido por Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi. Distribuição: Universal Pictures


Roger Waters: The Wall

Documentário sobre a turnê “The Wall Live”, de Roger Waters, que durou três anos, mesclando um retrato íntimo do fundador da banda Pink Floyd.

Um documentário musical desconcertante, político, pessoal e poderoso, único no gênero, indicado ao Grammy em 2016. Roger Waters, o compositor e líder do Pink Floyd, dirige ao lado de Sean Evans, unindo trechos dos shows da turnê “The Wall Live”, baseada no álbum conceitual de mesmo título, com longas sequências de viagens de Waters dentro de um carro, como se fosse um road movie existencial, onde ele analisa as perdas que sofreu durante a vida por causa da guerra – dentre os traumas, a morte do avô e do pai, militares que sucumbiram respectivamente na Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Em homenagem aos dois, e como forma de protestar contra as guerras pelo mundo, Waters escreveu uma série de canções imortalizadas pelo Pink Floyd.
“The Wall Live Tour” foi uma turnê caríssima, que custou R$ 55 milhões, durando três anos (2010 a 2013), num total de 192 apresentações em três continentes. Ao longo dos 132 minutos do doc, faz-se um recorte com partes principais do show, com cenas de palco na Grécia, França e a épica montagem na Argentina, trazendo músicas importantes da carreira dele, como “Another brick in the Wall”, “Hey you”, “Comfortably numb”, “Mother” e “Goodbye Blue Sky” – só para ter uma noção do engajamento de Waters, em dado momento ele sobe ao palco com uniforme nazista, de óculos escuros, empunhando uma metralhadora que atira para todos os lados da plateia.
Fora das imagens dos shows (cuja direção de arte é um arraso), tem o lado documental, Waters músico se confunde com o Waters pessoa comum, que chora diante do túmulo do pai morto, e há encenações típicas de cinema, quando ele conversa com um fantasma, procurando compreender o mundo cruel onde vivemos.
Nos créditos finais, ele homenageia pessoas do mundo inteiro mortas em algum tipo de guerra, chacina ou terrorismo – aparecem, no painel fotográfico com mais de 100 pessoas, três brasileiros, Chico Mendes, Jean Charles e Sergio Vieira de Mello.

Roger Waters: The Wall (Idem). Reino Unido, 2014, 132 minutos. Documentário. Colorido. Dirigido por Sean Evans e Roger Waters. Distribuição: Universal Pictures


Buena Vista Social Club

Os membros do lendário grupo cubano Buena Vista Social Club, com idades entre 70 e 90 anos, são convidados pelo guitarrista Ry Cooder para gravar um novo CD e fazer duas turnês, que entrariam para a história da música.

Importante documentário musical que celebra a contagiante música cubana, por meio da banda de maior notoriedade do país, a Buena Vista Social Club – que começou nos anos 40 como um clube de dança onde reunia semanalmente músicos de Havana, até ser fechado de maneira permanente, na década de 50, pelo regime de Fidel Castro.
Quem teve a ideia de reunir os membros do grupo foi o célebre guitarrista Ry Cooder, compositor americano que realizou muitas trilhas sonoras para cinema, como “A encruzilhada” (1986). Reuniu-se com um amigo de longa data, o diretor e roteirista alemão Wim Wenders, com quem já havia trabalhado em “Paris, Texas”, e juntos fizeram essa maravilhosa viagem musical sobre os quase setenta anos da banda cubana.
A ideia de Cooder era retomar o grupo para lançar um novo CD e em sequência abrir uma turnê (ao todo eram seis integrantes vivos, dentre eles o líder, Compay Segundo, todos aposentados, alguns esquecidos, com idade entre 70 e 90 anos). O objetivo demorou, mas saiu do papel – houve duas turnês do Buena Vista em 1998, a primeira na Europa e a segunda nos Estados Unidos (eles tocaram no Carnegie Hall), e o CD ganhou o Grammy de melhor álbum latino tropical.
No doc, Wenders capta cenas dos shows, depoimentos dos membros da banda, de seus familiares, e também percorre com a lente as ruas de Havana, para contar um pouco sobre os costumes do povo cubano.
Vencedor de mais de 10 prêmios em festivais, recebeu indicação ao Oscar de documentário em 2000, além do Bafta na mesma categoria.
Saiu há tempos em DVD pela Europa Filmes, depois pela extinta Spectra Nova, e em seguida numa coleção de Wim Wenders pela Vinny Filmes.

Buena Vista Social Club (Idem). Alemanha/ Cuba/ França/ EUA/ Reino Unido, 1999, 100 minutos. Documentário. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Wim Wenders. Distribuição: Europa Filmes/ Vinny Filmes/ Spectra Nova


Buena Vista Social Club: Adios

Dezoito anos depois do reencontro dos integrantes do Buena Vista Social Club, os remanescentes originais se juntam para uma nova turnê de despedida do grupo.

O primeiro doc “Buena Vista Social Club” (1999) recebeu indicação ao Oscar, foi celebrado no mundo inteiro e exibido no Brasil. Em 2017, portanto 18 anos depois, saiu a segunda e última parte, o “Adios”, a despedida do grupo cubano que revolucionou o cenário da música em Havana. Para contar essa história veio a duas vezes indicada ao Oscar Lucy Walker, documentarista inglesa do incrível “Lixo extraordinário” (2010). Com uma nova técnica cinematográfica, ela acompanhou a turnê de despedida, realizada nos Estados Unidos e em Cuba entre 2016 e 2017. Mas antes do reencontro dos lendários músicos, ela volta-se para fatos do filme anterior, utilizando um material inédito da outra turnê, de 1998, fazendo uma forte ligação com a História de Cuba, desde os movimentos de independência do país no finalzinho do século XIX à escravidão, ao apogeu da música cubana nos anos 40, onde se insere o Buena Vista, e por fim o regime comunista de Fidel Castro (que acabou com a banda nos anos 50). Ela ocupa mais da metade do documentário tratando velhas questões, para, finalmente, chegar ao ponto alto, o reencontro dos membros para a turnê de despedida - muitos deles, que já eram bem idosos no primeiro doc, haviam falecido, como Compay Segundo, Ibrahim Ferrer e Rubén González, restaram pouquíssimos da formação original, como Omara Portuondo e Eliades Ochoa, outros entraram no lugar, para que a banda não acabasse. Sob o nome de “Orquestra Buena Vista Social Club – Adios Tour”, deram conta do recado, viajaram centenas de quilômetros para levar o tom da música de Cuba para milhares de pessoas nos dois países visitados - em uma das apresentações, recepcionaram o presidente Barack Obama.
É um complemento interessante, bem editado, ilustrativo, mas inferior ao primeiro, que tinha sido um fenômeno cultural! Em DVD pela Universal.

Buena Vista Social Club: Adios (Idem). Cuba/EUA, 2017, 110 minutos. Documentário. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Lucy Walker. Distribuição: Universal Pictures


E a minissérie


O Chaplin que ninguém viu

Minissérie em três capítulos sobre os filmes perdidos de Charles Chaplin.

Nessa épica minissérie documental britânica ganhadora do Emmy e narrada pelo ator James Mason (meses antes de falecer), conhecemos um outro lado do gênio da comédia Charles Chaplin, com foco nele trabalhando fora da cena, no caso como diretor. A dupla de cineastas Kevin Brownlow e David Gill, historiadores do cinema mudo que ganharam quatro Emmys e criadores da série “American masters”, recuperaram um imenso material raro de Chaplin, nunca antes visto, com cenas editadas de seus filmes e curtas engavetados, que só foram encontrados na década de 80 – a minissérie é de 1983, seis anos depois da morte de Chaplin.
Dividido em três capítulos, “Os anos mais felizes”, “O grande diretor” e Tesouro escondido”, a série também explora com detalhes o processo de criação do diretor e ator quando fez obras-primas como “Tempos modernos, “Luzes da cidade”, “O garoto” e “O grande ditador” – como making of mesmo, Chaplin dirigindo, orientando o elenco em cena, refazendo passagens etc
Indicado a dois Baftas (melhor série e desenho de produção), é uma obra preciosa para os fãs do maior ator da comédia muda, disponível em DVD pela Obras-primas do Cinema em sua metragem original (156 minutos).

O Chaplin que ninguém viu (Unknown Chaplin). Reino Unido, 1983, 156 minutos. Minissérie/ Documentário. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Kevin Brownlow e David Gill. Distribuição: Obras-primas do Cinema

segunda-feira, 30 de março de 2020

Resenhas Especiais



A fim de ver um filme cult nessa quarentena? Confira críticas fresquinhas de seis títulos em DVD lançados pela Obras-primas do Cinema.

Mal do século

Em 1987, no Sul da Califórnia, Carol (Julianne Moore), uma dona de casa de classe média, desenvolve uma estranha alergia. Nenhum médico detecta as causas da doença. Ela então recorre à cura em tratamentos não-convencionais.

Um dos melhores cultmovies de Todd Haynes, que escreveu o roteiro e dirigiu, baseado num caso verídico. Foi também o primeiro trabalho da atriz Julianne Moore como protagonista, e que a revelou (havia feito oito filmes até então, tendo papéis secundários, e sete anos depois voltaria a ser dirigida por Haynes em “Longe do paraíso”, filme que recebeu quatro indicações ao Oscar, como melhor atriz para ela e melhor roteiro original, para ele).
Conta o estranho caso de uma dona de casa arrasada por uma doença do aparelho respiratório, que provoca alergias pelo corpo inteiro. Sem ajuda médica, e sem saber onde procurar uma solução palpável, vai a um centro de equilíbrio emocional e espiritual em busca de reabilitação. Nesse lugar sua vida será outra completamente diferente.
Misteriosa, com interpretações múltiplas, essa simbólica fita indie critica o consumismo (a protagonista, Carol, fica alérgica aos inúmeros aparelhos de limpeza e objetos de uso diário), dialoga com o estresse do mundo agitado em que vivemos, à dureza de conviver numa sociedade caótica e machista, e faz uma ponte com o filme anterior do diretor, aliás, sua estreia no cinema, “Veneno” (1991), um drama de terror que ganhou prêmio do Júri em Sundance, sobre o mundo adoecido pelo pânico e o estresse. Indo além, tanto “Veneno” quanto “Mal do século” tratam do terror da Aids, que acometia a comunidade LGBT nos anos 90 – por isso a alergia no corpo da personagem (na época, os gays atacaram ambos as obras cinematográficas, por não aceitarem a personagem branca e não haver nenhuma menção direta a eles).
Haynes filma sempre com câmera aberta, que distancia os atores do público, sem transmitir emoções. É uma técnica recorrente em suas obras. Há cenas gravadas em sua própria casa, também na de familiares – seus pais, irmãos e amigos próximos aparecem como figurantes.
Indicado a quatro prêmios no Film Independent Spirit Awards – filme, atriz, diretor e roteiro, o filme custou apenas U$ 1 milhão. Julianne, que já era magra, precisou perder cinco quilos para o papel, já que ela emagrece ao longo da história.
Uma fita alegórica e aclamada no circuito independente, disponível em DVD pela Obras-primas do Cinema - no disco tem o primeiro filme de Haynes, o curta-metragem “O suicídio” (1978), além de uma entrevista com a produtora Christine Vachon e trailer.

Mal do século (Safe). EUA/Reino Unido, 1995, 118 minutos. Drama. Colorido. Dirigido por Todd Haynes. Distribuição: Obras-primas do Cinema


Meu mestre, minha vida

Diretor autoritário, Joe Clark (Morgan Freeman) assume a coordenação de uma escola barra-pesada de Nova Jersey, enfrentando alunos e professores para tornar a instituição referência de ensino.

Um filme marcante das sessões da tarde, que passava direto na TV aberta no Brasil, com um trabalho excepcional de Morgan Freeman e um dos melhores sobre “professor x aluno”. O irregular diretor John G. Avildsen, ganhador do Oscar por “Rocky – Um lutador” (1976), criou uma obra notória, muito querida nos Estados Unidos, cujo roteiro foi escrito por Michael Schiffer, especializado em fitas de ação, como “As cores da violência” (1988) e “O pacificador” (1997).
No papel principal, com garra e coragem, está Morgan Freeman, como um ex-professor revolucionário, que agora assume o posto de diretor de uma escola violenta, a Eastide High School, situada em Paterson, New Jersey. O local está contaminado por professores estressados, alunos barra-pesada, que quebram tudo, vendem drogas, outros são usuários de crack, uns são ladrões e assassinos. No meio do campo minado, ele, um cara autoritário, com métodos pouco ortodoxos e muito arrogante, vai fundo com pulso firme para colocar ordem na casa – seu objetivo é tornar a instituição um lugar de paz e fazer com que os estudantes aprendam. Ao passar das semanas, ele vai adquirindo respeito de todos, muda a visão dos estudantes e dos professores (o tal Joe Clark é uma figura real, hoje com 81 anos, e inspirou muitos professores na América do Norte).
Reflete o ensino nas escolas públicas americanas nos anos 80, de certo aspecto semelhante às do Brasil, onde circulam alunos sem motivação, cuja realidade é tomada pela criminalidade. Os professores, idem, cercados de dilemas, medo, sujeitos à violência. Não melhorou tanto assim, ainda temos um longo caminho pela frente...
Gravado na verdadeira Eastside High School, conta com a participação de alunos e professores de lá como figurantes.
Nessa linha de filmes de professor em escolas barra-pesada tivemos bons exemplares – minha lista de preferência são “Sementes da violência” (1955), “Ao metre com carinho” (1967), “Um diretor contra todos” (1987), “Mentes perigosas” (1995) e “O substituto” (dois filmes de  mesmo título, mas de gêneros diferentes: a de ação de 1996, com Tom Berenger, e o drama de 2011, com Adrien Brody).
Em inglês, “Meu mestre, minha vida” é “Lean on me”, em referência à famosa e lindíssima música de Bill Withers (que toca no filme, claro), que virou uma canção-emblema para fortalecer a união entre os negros na sociedade e deles com os brancos, em pleno início da década de 70.

Meu mestre, minha vida (Lean on me). EUA, 1989, 108 minutos. Drama. Colorido. Dirigido por John G. Avildsen. Distribuição: Obras-primas do Cinema


Anjos caídos

Duas histórias de violência se cruzam pelas ruas de Hong Kong à noite: a de um assassino profissional e sua parceira, e a de um garoto mudo, assaltante de lojas, que tem como amiga uma jovem abandonada pelo namorado.

É Kar-Wai Wong em sua essência, num filme de arte para poucos, que tem uma estética revolucionária: uma câmera atordoante espia os personagens entre frestas de janelas e portas; a lente é uma grande ocular (olho de peixe) que distorce rostos, deforma a realidade; alterna-se a velocidade da gravação, com câmera lenta, depois avançada; engata closes malucos no rosto dos personagens; e a fotografia noturna é sedutora, com cores quentes fortíssimas, à base de neon. Com essa técnica feroz, Wong impressiona ao acompanhar o submundo do crime em Hong Kong, com personagens marginais, todos eles caminhando sem rumo pela noite vazia. Um matador profissional e garotas abandonadas figuram seu universo particular para tratar de temas como solidão e amargura – “Anjos caídos” (1995) é uma espécie de continuação de “Amores expressos” (1994, em DVD no Brasil pela Classicline), e em ambos temos o personagem He Zhiwu, aqui o assaltante mudo (é o mesmo ator, Takeshi Kaneshiro, mas em ‘Amores expressos’ ele é um policial, e não é mudo, fissurado por latas de abacaxi – em ‘Anjos caídos’ ele ficou mudo depois de comer abacaxi em lata estragado!). Outra marca autoral de Wong está na trilha sonora romântica considerada brega.
O diretor ganhou a Palma de Ouro em Cannes por “Felizes juntos” (1997), já foi indicado em Berlim, Bafta, categorias no Oscar... é sem dúvida um dos mais renomados da China e Hong Kong – se gostar de “Anjos caídos”, assista, dele, “Dias selvagens” (1990), “Cinzas do passado – Redux” (1994), “Amor à flor da pele” (2000), “2046: Os segredos do amor” (2004) e “Um beijo roubado” (2007, rodado nos EUA com elenco americano, como Jude Law, Natalie Portman e a cantora Norah Jones).
Imperdível! Acho melhor que o anterior, “Amores expressos”.

Anjos caídos (Do lok tin si). Hong Kong, 1995, 98 minutos. Ação/Drama. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Kar-Wai Wong. Distribuição: Obras-primas do Cinema

 
A mulher e o atirador de facas

Numa ponte em Paris, Adèle (Vanessa Paradis) é salva do suicídio por Gabor (Daniel Auteuil). A jovem encontra-se sem rumo, desencantada da vida; ele, um atirador de facas que trabalha no circo, então a convida para que possam trabalhar juntos. Ela aceita o desafio de ser modelo de suas performances, e dali nasce uma intensa amizade entre os dois.

Uma linda fotografia em preto-e-branco realça a beleza dessa notória fita de arte romântica sobre duas pessoas solitárias na Paris dos anos 90. É um filme delicado de sensações, uma poesia visual forte com personagens desalentados. Gira em torno do atirador de facas em turnê pela Europa com sua musa, uma garota fracassada, que ele salvou numa noite. Cresce entre eles um jogo tenso e sedutor, quando estão frente a frente nas performances do circo (o atirador de facas pode matar sem querer seu alvo). E fora das apresentações o laço entre ambos é irrompível, ensurdecedor, até que... (assista para saber!).
Concorreu ao Bafta e ao Globo de Ouro de filme estrangeiro, e Daniel Auteil ganhou o Cesar de ator – ele é ótimo, versátil, chamo-o de Robert De Niro francês, devido à semelhança de rosto. Junto com a modelo, atriz e cantora francesa Vanessa Paradis dá um show, inclusive nas cenas eróticas que já entraram para a história! Paradis conviveu 14 anos com Johnny Deep, com quem teve dois filhos, dentre eles a atriz Lily-Rose Deep (de “Além da ilusão” e “O rei”).
Uma fita charmosa, romântica e que não deixa de ser triste, dirigida por Patrice Leconte, de “O marido da cabeleireira” (1990) e “Uma passagem para a vida” (2002).
PS: Teve outro título no Brasil, com a tradução direta do francês, “A garota sobre a ponte” (“La fille sur le pont”).

A mulher e o atirador de facas (La fille sur le pont). França, 1999, 87 minutos. Drama. Preto-e-branco. Dirigido por Patrice Leconte. Distribuição: Obras-primas do Cinema


Os últimos embalos da disco

Nos anos 80, as amigas editoras de Manhattan Alice (Chloë Sevigny) e Charlotte (Kate Beckinsale) trabalham duro de dia para, à noite, ir a uma discoteca badalada, onde procuram novas amizades, e se rolar, um amor na pista de dança.

O roteirista e diretor Whit Stillman, indicado ao Oscar de melhor roteiro por “Metropolitan” (1990), traça suas memórias de juventude nesse filme também sobre festas na Nova Iorque de 30 anos atrás. Divertido, afiado, crítico, ele comenta a mentalidade e os modos de vida dos yuppies (Young Urban Professional), que eram os jovens profissionais entre os 20 e 40 anos que predominaram o cenário novaiorquino dos anos 80, aqueles cuja situação financeira oscilava entre a classe média e a alta, que valorizavam bens materiais, eram conservadores etc Todos os personagens do filme (homens e mulheres) são reflexos do autor, yuppies em busca do sucesso em suas profissões, trabalhando arduamente de dia, para à noite frequentar baladas agitadas. Uma geração distante da atual, num tempo que ficou para trás... – outro ponto que o diretor toca é o fim da era das discotecas, por isso o título.
Embalado por uma trilha dançante dos anos 70 e 80, como “I’m coming out”, “The tide is high”, “Let’s all chant”, “Everybody dance”, “More, more, more”, “Dolce vita”, o filme funciona como um estudo social, acerca dos modos e do comportamento de um grupo de indivíduos.
Stillman voltou a trabalhar com as duas atrizes daqui, Kate Beckinsale e Chloë Sevigny, no romance de época “Amor & amizade” (2016).

Os últimos embalos da disco (The last days of disco). EUA, 1998, 113 minutos. Drama. Colorido. Dirigido por Whit Stillman. Distribuição: Obras-primas do Cinema


Häxan: A feitiçaria através dos tempos

Documentário e drama se fundem para contar uma breve história da bruxaria nos mais de três mil anos de civilização humana.

Obra-prima do cinema fantástico, produzido entre 1919 e 1921, “Häxan” é uma espécie de documentário antropológico com ficção (na linha do terror e da fantasia), baseada em estudos do diretor dinamarquês Benjamin Christensen sobre misticismo, bruxaria e crenças em espíritos malignos. Mudo e preto-e-branco, intercalando sequências coloridas à mão, explica, numa linha do tempo e de maneira didática, como os povos ocidentais e orientais reagiam aos cultos secretos, às chamadas “bruxarias”. Acompanha povos antigos, como os egípcios e celtas, até os europeus na Idade Média, sempre mostrando as perseguições e práticas de tortura contra os magos/bruxos em todos esses períodos. E por fim faz uma analogia ao mundo no século XX – foi escrito, dirigido e produzido por Benjamin Christensen, que aparece no início como se contasse a história, ou seja, ele dá o tom de pessoalidade para o filme, como se defendesse uma tese. Por ser mudo, tem quadros com textos e ilustrações antigas extraídas de livros – por conter desenhos fortes de perversão sexual e mortes, sofreu censura na época em vários países.
É considerado o filme escandinavo mais caro da história, custando dois milhões de coroas suecas - não é só documentário, tem encenações, gastaram muito com maquiagem, atores, direção de arte etc).
Por ser um filme muito velho, existem várias cópias ruins e editadas na internet, porém esta é a oficial lançada no Brasil, a maior em termos de metragem (106 minutos) e com melhor imagem (remasterizada, que saiu há poucos meses em DVD em edição especial pela Obras-primas do Cinema, com luva, card colecionável e diversos extras, com destaque para a introdução do autor para uma edição de 1941 e uma versão de 76 minutos narrado por William S. Burroughs). Uma fita raríssima, que vale ser descoberta!
PS: Häxan significa “bruxa” na Escandinávia, e em outro contexto, “hermetismo”.

Häxan: A feitiçaria através dos tempos (Häxan). Suécia, 1922, 106 minutos. Documentário/Terror. Preto-e-branco/Colorido. Dirigido por Benjamin Christensen. Distribuição: Obras-primas do Cinema

sábado, 28 de março de 2020

Cine Cult



A questão russa

Durante a Guerra Fria, um jornalista americano ligado a uma rede de jornais dedicado a destruir o comunismo viaja à URSS para descobrir notícias importantes sobre o país. Ao regressar para os Estados Unidos, o editor-chefe pede para que ele escreva um livro distorcendo os fatos, com o objetivo de promover uma campanha contra a União Soviética. Não aceita a proposta, o que o faz ser perseguido.

Um filmão soviético que lança luz e críticas ao capitalismo, mais precisamente à supremacia dos Estados Unidos na Guerra Fria, também não deixando para trás comentários firmes sobre a postura da URSS no mundo socialista. Realizado em plena Guerra Fria (1948), o drama é baseado na peça de Konstantin Simonov, com uma direção soturna e roteiro de Mikhail Romm, do documentário “O fascismo de todos os dias” (1965). Romm tratou com eloquência questões sobre o medo do comunismo na América, os magnatas de Wall Street, a perseguição aos jornalistas por causas partidárias e a guerra ideológica/intelectual na Guerra Fria, num longo período onde o mundo se polarizou em dois blocos econômicos, acirrando as decisões entre os líderes dos principais continentes.


Conheça essa fita de arte de excelência, desafiadora, questionadora, uma obra raríssima, pela primeira vez em DVD no Brasil, distribuído pela CPC-Umes (a cópia está nota 10).  

A questão russa (Russkiy vopros). URSS, 1948, 87 minutos. Drama. Colorido. Dirigido por Mikhail Romm. Distribuição: CPC-Umes Filmes

Cine Cult



Quadrilha de sádicos

Os integrantes da família Carter, em viagem pelo estado da California, adentram um desvio de terra que os levam a uma área de testes nucleares, onde habitam um grupo de canibais deformados.

O falecido mestre do cinema de horror Wes Craven homenageou outro mago do gênero, Tobe Hooper, fazendo, com esse filme de pequeno orçamento, um diálogo direto com o polêmico “O massacre da serra elétrica” (1974), realizado três anos antes. Ambos têm histórias parecidas, envolvendo um grupo de pessoas perdidas numa área isolada onde habitam canibais vorazes – “O massacre” ainda é superior, mais violento, pesado e indigesto. “Quadrilha de sádicos” sofreu cortes para ser exibido no circuito de cinemas americanos, e Craven nunca lançou a versão definitiva/estendida.
Com um orçamento na mão de U$ 230 mil, rodou o projeto em poucos dias, todo em locações, na região de Apple Valley e na vizinha Victorville, áreas de desérticas do estado da California. Foi seu segundo longa, escrito por ele também – Craven criou as séries de filmes “A hora do pesadelo” e “Pânico”, só para lembrar. E um dos primeiros filmes de Dee Wallace, que se tornou rosto comum em fitas de horror, como “Grito de horror” (1981), Cujo” (1983), “Criaturas” (1986), e esteve no clássico “E.T. – O extraterrestre” (1982).
Os sádicos do título infeliz são um grupo de canibais deformados, vítimas de uma contaminação radioativa, que vivem em uma região de testes nucleares da Força Aérea Americana; todos têm nomes de planetas (Júpiter, Mercúrio, Marte e Plutão), usam roupas indígenas meio hippie, e passam a perseguir uma família perdida no deserto. Quase tudo ali é maquiagem – exceto Michael Berryman, que realmente possuía uma deficiência genética, a Displasia ectodérmica, que o fez ter um crânio avantajado.


Modesto, bem amador, carrega muito suspense, com sequências rápidas de perseguições e mortes. Teve uma continuação descartável em 1984 (“Quadrilha de sádicos II), e duas refilmagens, “Viagem maldita” (2006, que é boa) e “O retorno dos malditos” (2007).
Integra o box “Wes Craven”, com quatro obras de terror do cineasta, e este é o melhor da caixa – tem também a continuação, “Quadrilha de sádicos II”, “Aniversário macabro” (o primeiro filme dele, de 1972) e “Benção mortal” (1981). Apresenta disco duplo, uma hora de extras e cards colecionáveis.



Quadrilha de sádicos (The hills have eyes). EUA, 1977, 91 minutos. Terror. Colorido. Dirigido por Wes Craven. Distribuição: Obras-primas do Cinema

Viva Nostalgia!



Winchester '73

No final da Guerra Civil, o cowboy Lin McAdam (James Stewart) chega a uma cidade sem lei do oeste selvagem para participar de um concurso de tiro. O prêmio é o cobiçado rifle Winchester modelo 1873, único da região. Lin ganha a arma, mas logo é atacado por um grupo de pistoleiros que a roubam dele, para vendê-la aos índios. Movido por vingança e senso de justiça, o cowboy parte no encalço dos bandidos para recuperar o Winchester.

Faroeste clássico e um dos mais célebres da Era de Ouro de Hollywood, originalmente lançado pela Universal e que acaba de ser redistribuído no mercado brasileiro em DVD pela Classicline. Movimentado, com um bom James Stewart no papel principal, o filme, feito em preto-e-branco, inspirou muitos outros nos anos 50 e 60, mas este é imbatível!
Abre com uma narração sobre a verdadeira, famosa e disputada arma Winchester Modelo 1873, tida como “uma em mil”, que na trama se tornará motivo de disputa por índios, pistoleiros e bandoleiros do oeste.


Stewart (um dos meus astros preferidos) interpreta um cidadão do bem que ganha o tal rifle num concurso de tiro, em seguida é roubado, e ele revida com fúria cruzando cidadezinhas do deserto para obter de volta a arma. O caminho será longo, tenso, com balas, feno, saloons e um rastro de vítimas mostrando a fixação dos americanos pelas armas, e como isto mudou a relação das pessoas no país (uma crítica firme e dura). Nessa jornada acachapante, ele topará com uma série de personagens típicos do oeste selvagem: um indígena (Rock Hudson), o xerife Wyatt Earp (Will Geer), uma mocinha raptada (Shelley Winters), um pistoleiro meio doido, maluco por armas (Dan Duryea) e um soldado novato (Tony Curtis, num de seus primeiros filmes no cinema, creditado como Anthony Curtis).
Reviva a emoção dessa obra-prima do cinema americano, dirigido magistralmente por Anthony Mann, de “Os que sabem morrer” (1957), “El Cid” (1961) e outros clássicos.

Winchester '73 (Idem). EUA, 1950, 93 minutos. Faroeste. Preto-e-branco. Dirigido por Anthony Mann. Distribuição: Classicline

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Stalker

Dois homens, chamados de Escritor e Professor, são guiados por um Stalker até uma área de difícil acesso, fechada pelo Exército. Lá encontra-se “A Zona”, onde existe um quarto em que os desejos podem ser realizados.

A obra máxima de Andrei Tarkovsky pela primeira vez em Bluray, numa edição definitiva, recém-lançada pela CPC-Umes Filmes - o filme também saiu em DVD pela mesma distribuidora e está disponível ainda em um box pela Obras-primas do Cinema, junto com “Andrei Rublev” (1966), outro grande filme do cineasta soviético.
Drama com ficção científica, inspirado no livro “Piquenique na estrada”, de Arkadiy Strugatskiy, “Stalker” é uma fita de arte única, com uma fotografia estarrecedora, que alterna colorido, preto-e-branco e sépia, o que coloca a história num lugar e tempo incertos (a impressão é de que seja um futuro apocalíptico, ameaçado por guerras). Misterioso, filosófico, é também um dos filmes mais complexos do cinema, em que os três personagens debatem religião, ciência e desejo, em longas sequências sem som algum (característica fundamental do cinema de Tarkovsky).


Tudo envolve dois homens intelectuais guiados por um stalker até uma região lacrada pelo Exército, onde ocorreu a queda de meteoritos. A área abandonada originou a chamada “Zona”, que poucos têm acesso, e segundo uma velha lenda, escondido por lá existe “O Quarto”, um lugar sagrado, que materializa os desejos. Esses três desconhecidos encaram uma jornada de autoconhecimento, de purificação da alma e da mente, para entender os mistérios da humanidade.
Ganhador do prêmio especial do Júri no Festival de Cannes em 1980, é um filme de difícil acesso, para público restrito, com passagens indecifráveis, que devem ser sentidas e não compreendidas... Tarkovsky em seu momento mais iluminado! (Outras obras complexas do diretor são “O espelho”, “Nostalgia”, “Solaris” e “O sacrifício”, aliás, toda a filmografia dele está disponível em DVD).
Curiosidade: parte da equipe, elenco e o próprio diretor morreram de câncer – as famílias associaram a doença às gravações do filme, que ocorreram em uma usina radioativa aparentemente desativada na Estônia, e por eles terem ficado muito tempo lá, contaminaram-se.

Stalker (Сталкер). URSS, 1979, 161 minutos. Drama/Ficção científica. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Andrei Tarkovsky. Distribuição: CPC-Umes Filmes

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A família Addams

A família Addams se muda para uma mansão tenebrosa em Nova Jersey, no topo de uma montanha. Longe de qualquer contato humano, Gomez, Vandinha, Feioso e a matriarca Mortícia entram numa série de confusões macabras com os moradores da vizinhança.

A família Addams está de volta, agora em forma de desenho animado em computação gráfica! O tão esperado retorno deles é para o público infantil, nessa fita inusitada de entretenimento, nada além do que já tínhamos visto no seriado antigo (1964-1966), nos filmes (as versões de 1991 e 1993 são as melhores e mais lembradas, com Raul Julia e Anjelica Huston) ou na série animada, dos anos 90 – mas nesses exemplares o resultado combinava melhor.
A nova geração de crianças, as que acompanham “Monster High”, perceberá a semelhança. Tem piadas mórbidas, criaturas estranhas, coisas do além-túmulo e momentos politicamente incorretos (por exemplo, cenas de tortura entre Gomez e Morticia). E pitadas do sobrenatural, do macabro e do sombrio completam os ingredientes do filme, que peca apenas num ponto, o roteirinho simplista, onde nada demais acontece – repare que é uma sucessão de fatos repetidos. Tirando essa exigência (que as criançada e parte dos jovens nem vão ligar), assiste-se tranquilamente...


A bilheteria foi bem nos Estados Unidos, aliás a campanha do filme lá fora ganhou corpo, enquanto aqui pouco se falou. Olhe só quem empresta as vozes para a família Addams: Oscar Isaac (Gomez), Charlize Theron (Morticia), Chloë Grace Moretz (Vandinha), Finn Wolfhard (Feioso), Snoop Dogg (primo It) e Bette Midler (Avó), além de Allison Janney, Martin Short e Catherine O’Hara. Um timão!
Dirigido pela dupla Greg Tiernan e Conrad Vernon, da besteirenta animação “Festa da salsicha” (2016), que anunciou a segunda parte para 2021.
Saiu esse mês em DVD pela Universal, num disco cheio de extras.

A família Addams (The Addams family). EUA/Canadá, 2019, 86 minutos. Animação. Colorido. Dirigido por Greg Tiernan e Conrad Vernon. Distribuição: Universal

Cine Lançamento



O poço

Num sistema prisional vertical, os encarcerados vivem de dois em dois em plataformas numeradas. Quando são obrigados a racionar alimentos, instala-se uma crise social, gerando motins e uma onda de violência e assassinatos.

Nesses dias de isolamento social devido à pandemia do Covid-19, o Netflix comprou os direitos de um filme espanhol violento e sombrio sobre cárcere, ganhador de prêmios em festivais como Toronto, Sitges, Gaudí e Goya, que havia sido lançado na Espanha em 2019, mas pouca gente assistiu. Ou seja, não é uma produção original do Netflix, e sim a distribuição no Brasil e em outros países foi realizada por ela.
Foi filmado dentro de uma câmara fechada com poucos cenários e personagens, que vão enlouquecendo durante o longo confinamento. As pessoas dali recebem uma mesa farta de comida, por meio de uma plataforma móvel, que desce, e que deve ser consumida em tempo recorde – ela vem cheia no primeiro nível, e vai descendo, deixando as sobras para outros níveis, para os debaixo se alimentarem. O foco é no personagem Goreng (Ivan Massagué), que divide a cela com um velho misterioso. Chega o dia em que ele decide subir para ver os outros níveis, e quando todos precisam racionar comida, instala-se uma crise social sem precedentes. Pessoas vão se espancar até a morte, a trama fica sinistra, obscura, violenta, até atingir o ápice num desfecho sombrio, uma triste alegoria, aberta a interpretações. Fica a pergunta: “O que deixaremos para as próximas gerações?”


Em seu primeiro longa-metragem, o criativo e ousado diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia realizou um filmaço que apela para uma crítica às camadas sociais, ao isolamento, às atitudes desumanas que as pessoas podem ter diante do caos, a disputa por comida num sistema cruel que devora a gente. No ponto em que o protagonista pretende escalar até o andar de cima, há uma metáfora sobre o atual sistema que não permite que os pobres possam ascender na sociedade (como diz na abertura, “Existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem”), ou seja, a única mudança de estágio é para baixo...
Misturando terror, ação e scifi (a história é num futuro incerto), com uma fotografia apreensiva, bem escura com tons avermelhados, é um tapa na cara, que serve como reflexão nessa terrível época de pandemia, onde muita gente estoca alimentos e não tem um pingo de solidariedade com o próximo.
Ao público claustrofóbico e àqueles que se impressionam com fitas violentas, cuidado ao assistir!

O poço (El hoyo/ The platform). Espanha, 2019, 94 minutos. Horror/Ação. Colorido. Dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia. Distribuição: Netflix