terça-feira, 10 de junho de 2008

Entrevista Especial

Criminalidade e humor ácido: temas presentes nos roteiros de Marçal Aquino (*)

Felipe Brida

Os roteiros de cinema assinados por Marçal Aquino reúnem aspectos peculiares, tanto nas histórias policiais, com foco na violência urbana e no submundo da prostituição, quanto nas metáforas e acidez na comédia de humor negro. Apesar de estar escondido por trás dos textos, Aquino é hoje um dos nomes de destaque do cinema brasileiro. Seu rosto não está na telona, mas as idéias e reviravoltas das tramas mantêm-se presentes.
Jornalista e escritor, nascido em 1958 em Amparo, interior de São Paulo, firmou sólida parceria com o diretor Beto Brant, e juntos fizeram cinco longas-metragens: “Os Matadores” (1997), “Ação Entre Amigos” (1998), “O Invasor” (2002), “Crime Delicado” (2005) e “Cão Sem Dono” (2007). Escreveu ainda o roteiro da prestigiada comédia-dramática “O Cheiro do Ralo”, um dos filmes-sensação de 2007.
Em entrevista especial ao Notícia da Manhã, Marçal Aquino, que esteve no SESC/Catanduva para participar do “Encontro Marcado com a Literatura” no dia 29 de maio, contou mais sobre o universo dos roteiros de cinema criados e fez uma avaliação a fundo sobre o atual sistema de produção de filmes no Brasil.


NM – A parceria com Beto Brant rendeu trabalhos elogiados em festivais de cinema de todo o mundo. Como surgiu esse trabalho em dupla?

Aquino – Em 1991 o Beto, que até então não me conhecia, interessou-se por um conto do meu livro “As Fomes de Setembro”. A idéia dele era rodar um curta e para tal resolveu me procurar para receber a autorização para o projeto. Estabelecemos a partir daí uma amizade, rica em diálogos sobre cinema, literatura e vida. Até hoje cultivamos esse diálogo, que já rendeu cinco longas-metragens – a maior parte deles sucesso de público. Escrevi o roteiro de todos os filmes de Beto Brant. Quando resolveu rodar seu primeiro filme, estávamos muito próximos,e pediu para que eu escrevesse uma história intrigante. Apresentei um esboço que logo viraria seu primeiro trabalho, o policial “Os Matadores”, em 1997. Firmamos parceria e sempre discutimos idéias de roteiro juntos. Continuo feliz ao ver minhas histórias serem transpostas ao cinema pelas mãos de Beto Brant.

NM – Nota-se a linha policial na primeira fase de Beto Brant, um gênero pouco manejado pelos diretores brasileiros. De onde vem seu interesse pela narrativa policial?

Aquino – Como leitor, sempre gostei de textos policiais, e vale destacar que estive ligado ao mundo da polícia quando era repórter (policial) em jornais de São Paulo, como o Jornal da Tarde. Uma das vertentes da minha obra é policial – “Os Matadores”, “O Invasor” e o novo “Cabeça a Prêmio”, sob a direção de Marco Ricca, um projeto já em andamento. Eu prezo e gosto de inventar uma boa trama envolvendo as facetas da polícia, bolar algo que prenda o leitor/telespectador do começo ao fim diante de uma temática intrigante e diferente.

NM – Sobre o conturbado “O Cheiro do Ralo”, predominam na comédia dramática elementos metafóricos, retirados da obra original de Lourenço Mutarelli. Como foi transpor tais metáforas para o roteiro e depois vê-los na tela?

Aquino – O trabalho propriamente de roteiro foi bastante simples, já que o diretor pernambucano Heitor Dhália havia feito um trabalho prévio, e por ser um diretor detalhista e aplicado, começou a estabelecer em sua cabeça as referidas metáforas. Ele usa e abusa das figuras de linguagem, que são essenciais em “O Cheiro do Ralo”. O filme pode ser considerado linear, porém, com as metáforas, o telespectador “quebra” a cabeça para entender o trabalho visual e as mensagens ali escondidas. Há abertura para diversas interpretações e ambigüidade. Por isso, não é um filme de fácil compreensão, há muita riqueza por trás. Vale reassistir a obra (e ler o livro) para uma melhor compreensão.

NM – “O Cheiro do Ralo” é o segundo filme com Heitor Dhália. Uma nova parceria começa a se formar?

Aquino – O Heitor é um diretor extremamente aplicado e um novo nome de destaque no cinema nacional contemporâneo. Ele sabe distinguir cada etapa de um filme e não se limita apenas ao papel de um diretor, mas vê o filme como um todo (enquadramento, figurino, direção de arte etc). A prova de que o Dhália sabia o que estava fazendo com “O Cheiro do Ralo” foi tentar construir um filme mais acessível que seu primeiro longa, “Nina” (com roteiro meu). Eu achava que impossível devido ao tema intrínseco de “O Cheiro do Ralo”. E quando ficou pronto o projeto, vi que era mesmo mais acessível do que “Nina”. Isto porque o diretor usou o caminho da comédia de humor negro para suavizar a indigesta trama.

NM – Houve então mudança de tom do livro do Mutarelli para o roteiro?

Aquino – O livro do Mutarelli (que está atuando agora, inclusive no novo filme baseado em sua obra, “O Natimorto”) é difícil de ser definido. É complexo demais, tem lá seu humor, mas este é cáustico, forte. Se você ler o livro sob uma clave séria, ele chega a ser insuportável dado à crueldade do protagonista, um sujeito maldoso e apático. Dhália sacou que poderia variar o tom e transforma-lo para que o filme fosse levado ao público. Foi feliz na escolha. Houve um sucesso inesperado de um filme pequeno, barato, feito na raça e que pôde chegar ao universo de muitos.

NM – Marçal, sobre a atual produção de cinema no Brasil, o país ainda sofre com a falta de distribuição de filmes? Ainda é válida aquela história de que brasileiro não assiste a filme brasileiro?

Aquino – A gente conseguiu equacionar um problema antigo, que era o fomento da produção a partir da Retomada (na era Collor o cinema brasileiro “morreu”). Quando muitos diretores se lançaram a produzir filmes, atingimos o fomento, no entanto não chegamos ao outro extremo, que é a distribuição e exibição das obras. Produz-se, mas não se exibe. Temos hoje uma produção forte, ainda que apoiada e sustentada pelas leis de renúncia fiscal; no ano passado foram 40 longas produzidos. É necessário resolver os detalhes da distribuição e exibição, uma questão mais complexa, porque existem hoje as distribuidoras norte-americanas chegando com condições especiais de lançamento. Eu não tenho a solução, mas quem lida com leis de incentivo ao cinema precisa rever a situação. Necessita-se de um “escoador” para passar esses filmes ao público. Fazer filme e exibir uma sessãozinha no gueto e depois ser esquecido é ingrato demais para um país forte na área de cinema.

(*) Entrevista publicada no jornal Notícia da Manhã, periódico de Catanduva, na edição do dia 10/06/2008. Créditos para foto de Marçal Aquino: Felipe Brida

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