sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Especial de cinema


À caça dos desavisados – Uma análise de ‘Armadilha para turistas’ *

Por Felipe Brida

Se você dirigisse por uma longa estrada deserta e percebesse que seu carro furou o pneu, pediria ajuda em um museu abandonado à beira da estrada? É o único lugar próximo, pense bem! Bom, para ajudar, os bonecos de gesso lá guardados se mexem sozinhos, sem energia elétrica ou manipulação de cordas. Alguns até riem alto e gritam. Aposto que você e eu não pisaríamos nunca nesse lugar medonho, mas os amigos desavisados Molly, Eileen, Becky, Jerry e Woody sim, se aventurariam no museu particular do Sr. Slausen.
‘Armadilha para turistas’ (1979) é um proto-slasher assustador, reverenciado pelos fãs do cinema de horror alternativo, e que ajudaria a abrir as portas do inferno para a década do slasher movie a partir do ano seguinte. Traz a trama básica dos filmes sangrentos: um grupo de amigos, na flor da idade, presos num lugar misterioso e caçados impiedosamente por um serial killer mascarado. Só que há ingredientes originais e até disruptivos na concepção do assassino aqui, o maquiavélico Sr. Slausen (papel do veterano ator Chuck Connors, de ‘Furacão de emoções’, de 1953, e ‘No mundo de 2020’, de 1973): ele tem poder telecinético, revelado no decorrer da trama. Assim, foge do tipo comum de psicopata com perfil realista, adquirindo uma aura sobrenatural, mística. Ele é um rancheiro manco, de rosto quadrado, que usa chapelão e calças jeans com suspensório e carrega consigo uma velha espingarda. Aparentemente um bom cidadão, que se aproxima dos jovens da história assim que o carro deles apresenta problemas e estão perdidos nos arredores de sua fazenda. Ele dá conselhos sobre os perigos naturais da região, como animais peçonhentos e lobos. Prontifica-se a ajudar no carro quebrado, conduzindo os jovens ao velho museu de sua família, um local turístico chamado ‘Old West Museum’, que não funciona mais – Slausen mora nos fundos. O grupo de amigos se depara com quinquilharias acumuladas, restos de bonecos, ferramentas enferrujadas e mesas no chão. Slausen então conta que o irmão, Davey, que não reside mais ali, fabricou os bonecos de gesso com aparência humana. É um contador de ‘causos’, um bom papo, que vai levando os jovens na lábia, com histórias que nunca sabemos se são verdadeiras, incluindo a da esposa falecida. Passadas algumas horas da ausência de Slausen, os jovens, sozinhos no museu, são mortos um a um, por objetos que adquirem vida – uma barra de aço que sai a toda velocidade de um armário atingindo as costas de um coitado, um lenço que estrangula uma das meninas e por aí segue. E tanto os bonecos do Old West Museum quanto manequins empoeirados aparecem com risos mortais para dar calafrios nas vítimas.




O assassino é, na verdade, Sr. Slausen, que utiliza a telecinese para atacar – nunca ficam claros os motivos de como ele adquiriu tais poderes. Percebe-se que ele, à distância, usa a força da mente para afogar o carro dos turistas, além de fazer janelas abrirem e fecharem sozinhas e atirar objetos. O que sim é evidente são seus traços de Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI), semelhantes ao de Norman Bates, de ‘Psicose’, embaralhando realidade com fantasia. Davey, o irmão, não existe, tudo vem de Sr. Slausen. Ele manipula, cria as armadilhas, joga a culpa no irmão endoidecido e desaparece. Quando retorna para matar, traja capote, chapéu e uma máscara de gesso bizarra, tornando-o um psicopata de primeira e único. E também um personagem complexo, de inúmeras camadas – nós, espectadores, nunca sabemos os limites desse serial killer, e o que é verdade e mentira em suas falas.
Stephen King, o mestre do terror literário, relata no livro ‘Dança macabra’ (1981) sua relação com a indústria de entretenimento, com o cinema de horror e as influências que teve. Segundo ele, ‘Armadilha para turistas’ o marcou, apontado como um dos poucos filmes que realmente sentiu medo. Ele cita a abertura do filme, aterrorizante e que já induz o tom maléfico da obra – na abertura, um carro com o pneu furado está ao léu numa estrada de terra. O motorista caminha até um bar vazio, não encontra ninguém e perambula por ali, deparando-se com bonecos que parecem animados, que riem dele. O rapaz fica preso num dos cômodos, até que o armário de ferramentas chacoalha, os risos aumentam, e uma barra de ferro trepida, levita e voa, perfurando a vítima, que morre. É o poder da telecinese do vilão, que nunca vemos, só escutamos seus passos – ele só é revelado na metade, e até lá o filme soa enigmático e estranho, deixando a pergunta “como os bonecos do nada riem e vidros e objetos se movimentam sem a mão humana?”
O museu de Sr. Slausen carrega o duplo sentido do termo “armadilha para turistas”: tem o conceito de um lugar com atrativos para chamar a atenção de viajantes e levá-los para gastar e comprar, ou seja, fisgar o turista, mas também tem o sentido do mal, um espaço de sacrifícios humanos, com armadilhas mortais para trucidar com as pobres vítimas. Vítimas essas que serão transformadas em bonecos de gesso!
Fortemente influenciado por ‘Psicose’, ‘O massacre da serra elétrica’ (1974) e, claro, ‘Museu de cera’ (1953), esse “slasher antes do slasher” traz uma trama macabra, um assassino de arrepiar, sustos e bonecos assustadores. Tem mais coisas boas? Sim, uma trilha sonora caprichada, que lembra algo circense, do italiano Pino Donaggio, compositor-parceiro de Brian De Palma em ‘Carrie, a estranha’ (1976), ‘Vestida para matar’ (1980) e outros trabalhos. Chuck Connors é a força-motriz do longa, num papel sinistro (antes oferecido aos atores Jack Palance e Gig Young), que puxa o restante do elenco, composto por nomes que se destacariam na década de 80, como Jocelyn Jones, Jon Van Ness, Tanya Roberts e Robin Sherwood.
O diretor David Schmoeller conta que reaproveitou um roteiro seu de três anos antes, do curta-metragem de conclusão da faculdade, ‘The spider will kill you’ (1976), sobre um homem cego trancado num sótão com manequins, até se apaixonar por um deles. Convidou um amigo roteirista, J. Larry Carroll, e escreverem juntos ‘Armadilha para turistas’. Barato para a época, orçado em U$ 800 mil, foi produzido por Charles Band, que tem no currículo 440 filmes e telefilmes, muitos deles terror independente, incluindo ‘O mestre dos brinquedos’ (1989), fita para home video dirigida por Schmoeller, muito reprisada na TV e que ganharia continuações – realmente, Schmoeller era fascinado por bonecos malditos!
‘Armadilha para turistas’ chega agora em versão restaurada, numa cópia fiel pela Versátil Home Video, na metragem original de cinema, de 90 minutos –países como a Itália proibiram a exibição, por conter cenas discutíveis de violência e tortura, enquanto outros editaram cenas e lançaram uma versão com cortes, de 85 minutos. Um filme autoral e cultuado, que ajudou a introduzir o slasher no cinema norte-americano, e reúne ainda hoje legião de adoradores.

* Resenha escrita especialmente para o livro "Psicopatas no cinema - Filmes essenciais", lançado pela Versátil Home Video em julho desse ano. Livro disponível para venda no site da Versátil, diretamente no link hhttps://www.versatilhv.com.br/produto/livro-psicopatas-no-cinema-filmes-essenciais/5572486. Livro lançado junto aos boxes 'Slashers vol. XVI', 'Slashers vol. XVII' e 'Obras-primas do terror - Psicopatas - Vol.2'.








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