O mal, o terrificante, o profano: uma análise de ‘A sentinela dos
malditos’ a partir da Estética do Feio
Por Felipe Brida *
Por Felipe Brida *
Em junho de 1968, um filme de terror estreava nas salas de cinema e
mudaria para sempre a maneira de se fazer horror movies. ‘O bebê de
Rosemary’, de Roman Polanski, era uma navalha no olho do público. Mexeu com os
nervos das plateias num período em que a indústria de cinema norte-americana se
reorganizava em torno da Nova Hollywood, um jeito diferente de se fazer cinema,
rompendo com padrões estéticos/estilísticos, abrindo caminho para as produções
autorais e trazendo para a telona temas infinitos e nunca explorados. ‘O bebê
de Rosemary’ foi um marco expressivo desse momento, um terror psicológico
moderno, com clima de mistério permanente e profundamente assustador com suas
imagens delirantes. Deu margem para uma fila de cineastas rodarem obras
semelhantes, com o mal encarnado em pessoas comuns, de lugares corriqueiros com
manifestações demoníacas, e grupos de indivíduos performarem rituais satanistas.
‘A sentinela dos malditos’ (‘The sentinel’, de 1977) é um filho bastardo de ‘O
bebê de Rosemary’, com personagens e ambientação semelhantes.
A protagonista é uma modelo chamada Alison Parker (Cristina Raines, de
‘Nashville’, de 1975, e ‘Os duelistas’, de 1977), que, mesmo contra sua
vontade, irá se casar com o charmosão Michael Lerman (Chris Sarandon, de ‘Um
dia de cão’, de 1975, e ‘Brinquedo assassino’, de 1988). Antes do matrimônio,
ela quer passar uma pequena temporada sozinha. Procura então um apartamento em
Nova York para residir. Anda por alguns bairros e chega ao Brooklyn. Alison vai
até a um edifício antigo, de estilo londrino, cujo aluguel é bem barato. Ela
não desconfia do local, faz a mudança e começa a se adaptar ali. Solitária no
apartamento, relembra o trágico passado que a fez tentar suicídio: na
adolescência, o pai, mulherengo, fazia orgias em sua casa com meia dúzia de
mulheres, e ela observava tudo escondida. Uma vez, surpreendida pelo pai nu, num
dos bacanais, apanhou bastante dele. Quando flashbacks dessa época vêm à mente,
ela se petrifica e desmaia. Atualmente, o pai está hospitalizado, agonizando na
cama, e ela não o visita. O passado se mistura ao presente, parece que Alison volta
na casa da adolescência e vê aquela garota indefesa e traumatizada perambulando
pelo atual apartamento. Ela recebe todo dia a visita de um vizinho, Sr. Chazen (Burgess
Meredith, de ‘Rocky, um lutador’, de 1976, e ‘Fúria de titãs’, de 1981), um idoso
alegre, que mora com um gato e um passarinho. Parece se acostumar ao lugar.
Quando explora o prédio, dá de cara com Gerde (Sylvia Miles, de ‘Perdidos na
noite’, de 1969, e ‘Pague para entrar, reze para sair’, de 1981), uma professora
de balé, cuja pupila fica grudada a ela no sofá. Percebe, com o passar dos
dias, que todos os moradores são idosos, alguns receptivos, outros arredios.
Alison passa a presenciar fatos estranhos, como o gato de Sr. Chazen trucidando
o passarinho amarelo dele, e situações incômodas, como a pupila da professora
de balé que tem tremores numa espécie de frisson sexual. O espectro do pai
doente vem visitá-la no apartamento. E tudo evolui para algo mais complexo, diabólico
e aterrador. Paralelamente, um cardeal, Franchino (Arthur Kennedy, de ‘A
caldeira do diabo’, de 1957, e ‘Lawrence da Arábia’, de 1962), recebe um sinal
para ajudar aquela garota.
Nesse terror satanista, claustrofóbico e nauseante, nunca a Estética do
Feio esteve tão bem representada. Umberto Eco, no notório livro ‘História da Feiura’
(2007), faz um passeio pela História da Arte, pela música e pelo cinema ao
estudar o ‘feio’ como estilo. Eco diz que o feio é “aquilo que é repelente,
horrendo, asqueroso, desagradável, grotesco, abominável, vomitante, odioso,
indecente, imundo, sujo, obsceno, repugnante, assustador, abjeto, monstruoso,
horrível, hórrido, horripilante, nojento, terrível, terrificante, tremendo,
monstruoso, revoltante, repulsivo, desgostante, aflitivo, nausebundo, fétido,
apavorante, ignóbil, desgracioso, desprezível, pesado, indecente, deformado,
disforme, desfigurado (para não falar das formas como o horror pode se
manifestar em territórios designados tradicionalmente para o belo, como o
legendário, o fantástico, o mágico, o sublime”. (ECO, 2007, p.18 e 19).
Ainda em ‘História da Feiura’, na introdução, Eco cita uma passagem de
‘Crepúsculo dos ídolos - ou Como filosofar com o martelo’, penúltimo livro de
Nietzsche, publicado em 1888. Nietzsche diferencia assim a Estética do belo e do
feio: “No belo, o ser humano se coloca como medida da perfeição; [...] adora
nele a si mesmo. [...] No fundo, o homem se espelha nas coisas, considera belo
tudo que lhe devolve a sua imagem. [...] O feio é entendido como sinal e
sintoma de degenerescência [...] Cada indício de esgotamento, de peso, de
senilidade, de cansaço, toda espécie de falta de liberdade, como a convulsão,
como a paralisia, sobretudo o cheiro, a cor, a forma da dissolução, da
decomposição [...] tudo provoca a mesma reação: o juízo de valor ‘feio’. [...] O
que odeia aí o ser humano? Não há dúvida: o declínio de seu tipo”. (ECO, 2007,
p.15, apud NIETZSCHE, 1888, p.33).
Em ‘A sentinela dos malditos’, o feio reside no clima constante de
agouro e morte, nas criaturas apodrecidas e deformadas como se fossem mortos-vivos
que vão surgindo na tela, na explosão de choque e horror de algumas sequências
de violência. A protagonista, diante do horror imanente que toma conta daquele
prédio, confunde realidade com tormento. Cenas impressionam com a qualidade do
feio - o pai doente, que aparece de repente com bolhas nojentas no rosto, quase
em estado de putrefação, demarca o feio na condição do grotesco, do repelente e
do fétido (segundo Eco e também de acordo com Wolfgang Kayser em seu livro ‘O
grotesco’); um padre decrépito, misterioso e cego, que não fala, que mora no
último andar do prédio e fica na janela como um guardião olhando para fora,
está no território do feio menos pungente, do feio mais normalizado, que é o do
aflitivo e do assustador; mulheres canibais nuas que comem um morto e se
esbaldam nas vísceras entra na aura do feio vomitante, indecente, imundo e obsceno;
e no desfecho, no desfile de monstruosidades, a horda de gente amórfica, com
deformações, que sai do inferno para atacar (um deles tem um saco escrotal nas
bochechas), transita, pelo que Eco destaca, no ambiente do feio monstruoso,
nauseabundo, desprezível, disforme e desfigurado.
Ainda se pensarmos na estética do Feio, discute-se no filme o ‘mal
moral’, conceito do filósofo alemão Karl Rosenkranz, que também estudou o feio
nas culturas e na religião, e publicou em 1853 uma obra visionária, didática e
precursora, ‘Estética do Feio’. O feio, para Rosenkranz, é o “Inferno do belo”,
e características como ‘demoníaco’, o ‘satânico’, o ‘espectral’ e o
‘feiticeiresco’, temas que circulam no filme, fixam-se como qualidades do feio,
que são todas opostas ao ‘belo clássico’ e ao ‘belo natural’. O pecado e o
profano, presentes no filme, integram o ‘mal moral’, portanto, feio.
Devido a essas cenas fortes, de impacto visual, e pelo filme trazer
símbolos religiosos profanados, recebeu classificação ‘R-Rated’, ou seja, para
maiores de 18 anos.
O diretor inglês Michael Winner, profícuo nos anos de 1970 e 1980, que
chegou a rodar três filmes por ano, realizou muitos de ação, como ‘Assassino a
preço fixo’ (1972), ‘Scorpio’ (1973), ‘Jogo sujo’ (1973) e o mais famoso deles,
que teve continuações e remake, ‘Desejo de matar’ (1974), todas fitas policiais
violentas. Havia experimentado o terror antes com ‘Os que chegam com a noite’ (1971),
uma prequela de ‘Os inocentes’ (1961), com personagens extraídos do romance ‘A
volta do parafuso’, de Henry James. Winner produziu ‘A sentinela dos malditos’
ao lado de Jeffrey Konvitz, o escritor do livro que originou o filme, e ambos
fizeram o roteiro adaptado. Winner escalou para o filme um time de primeira, de
atores e atrizes famosos e indicados a Oscar, em participações especiais. Ava
Gardner é a dona do apartamento que a aluga para a modelo, Arthur Kennedy é o
cardeal, John Carradine é o padre senil e cego, Burgess Meredith e Sylvia Miles
são os vizinhos da modelo, Eli Wallach é um detetive, José Ferrer é um padre,
Jerry Orbach como o diretor de fotos da modelo, e Martin Balsam, um professor.
Vemos pontinhas de novatos, como Jeff Goldblum na pele de um fotógrafo de moda,
Beverly D’Angelo como a aluna de balé que tem um caso com a professora,
Christopher Walken como um jovem detetive, e Tom Berenger como um inquilino.
Cristina Raines e Chris Sarandon viviam o auge de suas carreiras e protagonizam
o filme.
A sinistra atmosfera de ‘O bebê de Rosemary’ é presente nesse filme,
assim como outros dois filmes de Roman Polanski, que andam juntos com ‘O bebê’
e podem ser entendidos como uma trilogia – ‘Repulsa ao sexo’ (1965) e ‘O
inquilino’ (1976). Os três tratam de confinamento, alienação, tormento e
loucura, com personagens face a face com estranhas manifestações, e a história dos
três se desenrola num apartamento fechado, como ocorre em ‘A sentinela dos
malditos’.
Originalmente da Universal Pictures, o filme foi rodado no Brooklyn novaiorquino,
durante dois meses.
* Resenha escrita especialmente para o livro " Obras-Primas
do terror - Pérolas da coleção" - foto acima, lançado pela Versátil Home Video em março
desse ano. Livro disponível para venda no site da Versátil, diretamente no link
https://www.versatilhv.com.br/produto/livro-obras-primas-do-terror-perolas-da-colecao/5543515
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