A artista e o ladrão
O Sesc Digital,
plataforma de streaming do Sesc criado no auge da pandemia da covid, em abril
de 2020, traz uma curadoria peculiar, de filmes cultuados e desconhecidos, que
ficam gratuitamente no ar por um ou dois meses. Toda semana lançam, pelo menos,
quatro estreias. Está em ‘cartaz’ lá até amanhã esse incrível documentário que
eu não tinha ouvido falar, ‘A artista e o ladrão’, vencedor do prêmio do júri no
Festival de Sundance em 2020. Com direção do norueguês Benjamin Ree, essa
coprodução Noruega/EUA conta uma história no mínimo estranha e bem curiosa – a
amizade de uma artista plástica com o ladrão que roubou suas obras de arte.
Pintora hiper-realista conceituada, nascida na República Tcheca e hoje moradora
da Noruega, Barbora Kysilkova criou um forte vínculo com o criminoso que furtou
dois de seus quadros de uma galeria de arte em Oslo, em 2015. Karl-Bertil
Nordland e um comparsa invadiram o local e levaram suas obras, avaliadas em
milhares de euros. Câmeras de vigilância flagraram o ocorrido, a dupla foi
detida, então Barbora desenvolveu um fascínio em descobrir informações sobre o
acusado. Eles se encontraram, a artista virou uma espécie de conselheira de Nordland,
até que passa a cuidar do homem após ser ferido em um acidente de carro. Ele
não tinha família e precisava de cuidados, então a pintora o ajuda, mesmo sem
nunca ter recebido os quadros de volta. O diretor do filme, com sua lente
precisa, acompanha os encontros de ladrão e vítima, que toparam participar de
um projeto inicialmente pensado como um curta-metragem, mas que aos poucos
ganhou novos contornos e virou um longa. O filme acompanha três anos na vida
deles, entre 2016 e 2019, entre longas conversas, confidências, discussão do
passado etc. Amigos e familiares de Barbora não entendem os motivos dessa
relação, e aos poucos ela vai trabalhando isso com o espectador. Recomendo – é
um filmão. Assistam em https://sesc.digital/home
Quando as luzes das marquises
se apagam - A História da Cinelândia Paulistana
Outro bom documentário,
agora brasileiro, na plataforma Sesc Digital, streaming do Sesc que completou
cinco anos, e que segue disponível de forma gratuita até amanhã. Como cinéfilo
e crítico, frequentador assíduo de salas de cinema, fiquei emocionado ao rever
esse filme que conheci em 2018 no Festival ‘É Tudo Verdade’. Reunindo vasto
material fotográfico das antigas, o filme resgata a história das salas de
cinema da Cinelândia Paulistana, situadas, a maioria delas, nas avenidas
Ipiranga e São João, entre o Largo do Paissandu e a Praça Júlio Mesquita. Num quadrilátero
compreendido entre cinco quarteirões no centro velho de São Paulo, 15 cinemas
funcionaram ali, alguns fechados, outros demolidos, como Cine Art Palácio, Cine
Ipiranga, Cine Marrocos, Cine Jussara, Cine Metro e Comodoro. Por meio de
depoimentos de sete frequentadores dos espaços, o filme se constrói pelas
memórias deles - o escritor Ignácio de Loyola Brandão, o montador de cinema e
professor Máximo Barro, os arquitetos e urbanistas Paula Freire Santoro e Nabil
Bonduki, o professor de Cinema da USP Eduardo Simões dos Santos Mendes, o
jornalista, diretor e pesquisador Inimá Simões e o proprietário de cinemas e
distribuidor Francisco Luccas Netto. Uns depõem de suas casas lembrando do
período áureo da Cinelândia, entre as décadas de 50 e 60, enquanto parte deles percorre
as ruas do centro velho onde funcionavam as salas, relembrando fatos curiosos,
sessões que assistiram etc. Os entrevistados falam da arquitetura dos cinemas,
do público que ali vinha, da importância desses espaços na construção cultural de
São Paulo. A Cinelândia Paulistana viveu seu auge nos anos 50, abraçando um
público de 30 milhões de espectadores por ano, até sofrer o baque nos anos 80,
com o fechamento gradual das salas por causa da concorrência com os cinemas de
shopping centers – mas antes de decretar falência, algumas compunham em sua programação
filmes pornográficos. Boa parte dessas salas viraram escritórios, outras
igrejas, um desfecho parecido com tantas salas de cinema pelo Brasil e mundo
afora – o documentário exibido em Cannes ‘Retratos fantasmas’ (2023), de Kleber
Mendonça Filho, fala desse triste fenômeno. Um documentário fundamental para
estudantes de cinema e cinéfilos em geral, que é uma viagem ao tempo, de um
período que não volta mais. Disponível no Sesc Digital até o dia 03 de junho,
em https://sesc.digital/home
Grand Theft Hamlet
A Mubi e seu acervo de
filmes incrivelmente inusitados... Misturando documentário e ficção, ‘Grand
Theft Hamlet’ (2024) é um filme de drama e ação que se passa dentro do jogo Grand
Theft Auto Online, um derivado do clássico jogo de assalto a carros GTA. Em busca
de trabalho, dois atores de teatro, desempregados durante a pandemia, quando os
teatros foram fechados, lançaram-se num desafio tremendo: encenar a peça ‘Hamlet’
com suas skins e fazendo a narração dentro do jogo preferido deles, o GTA
online. Sam Crane, ator de ‘Napoleão’ (2023), é um Hamlet da periferia, um gangster
de cabelos azuis, futuro rei de uma Dinamarca que se parece o gueto americano. Mark
Oosterveen, ator de ‘Guerra sem regras’ (2024), interpreta Apolonio, conselheiro
do Rei Claúdio, um inimigo de Hamlet. O protagonista embarca numa jornada
épica, perseguido por bandidos portando fuzis em carros e helicópteros,
enquanto planeja se vingar da morte do pai e assim recuperar o território que
lhe pertence, hoje tomado por uma gangue rival. Trocando a linguagem formal de William
Shakespeare por gírias atuais, mudando a Dinamarca do século XVII para um subúrbio
violento e anárquico do século XXI, o doc/drama se constitui 100 por cento no
jogo em ação – são 89 minutos de ambiente virtual, com cenário do GTA, com todos
os personagens de Hamlet numa jornada de começo, meio e fim, e a narração dos
atores ajudando a compor essa intensa trama – aparecem Rei Claudio, Gertrudes,
Ofélia, Laertes, o fantasma do pai de Hamlet, Horácio e a dupla Rosencrantz e
Guildenstern. Um filme diferente como narrativa, um jogo inteiro filmado e
vendido para cinema. Será uma experiência interessante para aqueles que se
afinarem com a proposta. Vencedor do Grande Prêmio do Júri no SXSW, participou
de diversos festivais conhecidos de documentário, como CPH:DOX, Visions du Réel
Film Festival e Hot Docs International Film Festival. Produção da Mubi, entrou mês
passado no streaming deles.
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