Filhos do mangue
A diretora Eliane Caffé ganhou
o Kikito de melhor direção no Festival de Gramado por este seu novo trabalho, que
acaba de chegar aos cinemas. É um drama com nuances de suspense psicológico que
se passa numa comunidade ribeirinha do nordeste brasileiro. Ali se encontra um
homem com amnésia, Pedro Chão (Felipe Camargo), acusado pela ex-mulher de
roubar um alto valor em dinheiro. Ele está perdido, com ferimentos pelo corpo.
Naquele local tomado por manguezais, os próprios moradores fazem as leis, e o
levam para um julgamento popular. Sob ameaças, Pedro não se recorda de nada, então
flashes de seu passado constroem sua trajetória até ali. Com uma trama
envolvente, focado num personagem que busca fios da memória para lembrar quem é
e entender os motivos de estar num lugar desconhecido, o filme toca em temas de
discussão atual, como violência doméstica, trabalho escravo e tráfico de
pessoas. É o quinto filme da versátil diretora paulistana de 64 anos, que costuma
registrar histórias de pessoas em constante movimento para mudar seu estado,
como fez em ‘Kenoma’ (1998), ‘Narradores de Javé’ (2003) e ‘Era o hotel
Cambridge’ (2016). Aqui, ela realiza um trabalho sério, de solidez, com
resoluções nada fáceis. Rodado e produzido em Barra do Cunhaú, uma baía na
cidade de Canguaretama, no Rio Grande do Norte, carrega uma fotografia peculiar,
que reforça a relação do humano com a terra, no caso o mangue, um lugar
instável e misterioso, que dá outro sentido ao filme, reforçando a ideia de
exploração dos indivíduos e da natureza. O mangue é o ambiente por onde o protagonista
irá andarilhar enquanto busca sentido para sua existência. Destaque para o bom
trabalho de Felipe Camargo, que faz pouco cinema – ele está com 65 anos.
Inspirado no livro ‘Capitão’,
de Sérgio Prado (que auxiliou no roteiro), o filme foi exibido em 2024 no
Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e no Festival
de Gramado também levou o Kikito de melhor atriz coadjuvante (Genilda Maria).
Está nos cinemas, com distribuição da Bretz Filmes.
Cazuza: Boas novas
Trinta e cinco anos
depois de sua morte, o cantor e compositor Cazuza (1958-1990) ganha um novo
documentário que traz outros contornos de sua intensa trajetória. Exibido este
ano no Festival In-edit Brasil, ‘Cazuza: Boas novas’ (2025) chega aos cinemas
brasileiros, uma produção original do canal Curta!, lançado nas salas pela
Curta Cine-Distribuidora, braço de distribuição do Grupo Curta!, em parceria
com a 5e60 Filmes e a Kajá Filmes. Com depoimentos de amigos e familiares e
trechos de seus últimos shows, o filme acompanha a fase final do ex-integrante
do Barão Vermelho, entre 1987, quando recebeu o diagnóstico de soropositivo,
até sua morte três anos depois. Foi exatamente nesse período que Cazuza mais
produziu, mesmo doente. Lançou o álbum ‘Ideologia’ – em que trata da Aids e da
morte, com músicas como a canção-título do disco, ‘Brasil’, ‘Blues da piedade’,
‘Faz parte do meu show’ e ‘Boas novas’; em seguida ‘O tempo não para’, disco ao
vivo, durante uma cansativa turnê de três dias no Canecão, no RJ, em 1988, com
show dirigido pelo ex-parceiro Ney Matogrosso (nele cantou músicas de sucesso
da carreira solo e do Barão vermelho); e por fim o último álbum, ‘Burguesia’,
já com a saúde muito debilitada, contendo músicas compostas por ele em parceria
com Rita Lee, Lobão, Frejat, Leoni e Angela Ro Ro. O doc reúne depoimentos
inéditos, gravados para o longa, de amigos músicos que lembram a trajetória de
Cazuza, como Leo Jaime, George Israel (ex-Kid Abelha), Ney Matogrosso, Gilberto
Gil e Frejat, além da mãe, que sempre cuidou dele e levou o nome do filho para
os quatro cantos do Brasil, Lucinha Araújo. Há muitas cenas de shows, boa parte
deles com imagens sem nitidez, como as do Canecão, além de bastidores, fotos
pessoais de festas e eventos em que Cazuza esteve, perfazendo um retrato único de
um compositor além de seu tempo, que faleceu cedo, aos 32 anos, marcando seu nome
na História do rock nacional e da MPB. Com direção de Nilo Romero (baixista,
compositor, produtor musical, amigo pessoal de Cazuza, com quem trabalhou) e codireção
de Roberto Moret, é uma justa e bela lembrança a Cazuza.
Jayne Mansfield,
minha mãe
Indicado ao Golden Eye e
ao Golden Camera no Festival de Cannes de 2025, este é um documentário revelador
sobre a atriz que teve fama, mesmo não tendo talento, e depois esquecida, Jayne
Mansfield (1933-1967), apontada como rival de Marilyn Monroe. Jayne fez filmes
nos anos 50 e 60, como ‘Sabes o que quero’ e ‘O grande sucesso de Rock Hunter’,
teve muitos romances e faleceu jovem, aos 34 anos, vítima de acidente de carro.
Quem dirige é a filha de Jayne, a também atriz Mariska Hargitay, premiada com o
Emmy pela série policial ‘Lei & ordem’. Nascida Maria, ganhou o apelido
Mariska por influência húngara do pai, o fisioculturista, ator e modelo Mickey
Hargitay, que foi Mr. Universo. O filme traz um enfoque inédito e em tom de
revelação exatamente quando Mariska busca o passado da mãe entrelaçando com a
sua própria paternidade - ela quer desvendar quem realmente é seu pai, pois havia
dúvidas sobre Mickey Hargitay. O que assistimos é uma angustiante onda de revelações,
com conclusões impressionantes, difíceis para Mariska. Gostei da narrativa do
filme, me surpreendi, e não conhecia esse desfecho na vida da atriz, que
mudaria para sempre a relação com os pais. Produção original da HBO Max, está
no catálogo do streaming. É um dos grandes documentários internacionais do ano,
cotado para o Oscar de 2026.
Revista Ms. – Uma
revolução editorial
Outro bom documentário produzido
pela HBO Max, que neste ano teve a première no Festival de Tribeca. Três
cineastas (Cecilia Aldarondo, Alice Gu e Salima Koroma) se debruçam numa
extensa pesquisa para analisar edições da icônica revista liberal e feminista ‘Ms.
Magazine’. Fundada em 1971 durante a segunda onda dos movimentos feministas por
Gloria Steinem e Dorothy Pitman Hughes, a revista chegou a 500 mil exemplares depois de muita luta para
entrar no mercado. Voltada para as mulheres, abordava questões sobre emancipação
feminina, racismo, formas de combate à violência doméstica etc. Gloria Steinem grava
depoimentos atuais, analisa o contexto da criação da revista e lê cartas que
recebia das leitoras – a Ms. Magazine foi apelidada por um tempo de ‘A amiga
portátil’, já que era uma revista do universo feminino que falava diretamente
sobre intimidade. O periódico ajudou a mulher a refletir sobre sua natureza e existência,
a quebrar tabus e permiti-las fazer suas próprias escolhas, abrindo assim diálogo
com a sociedade. Enfrentou ataques, resistiu e teve apoio de homens notórios, como
o ator Alan Alda, que escrevia como colaborador – ele é entrevistado para o
filme e lembra o quanto foi rejeitado por ter entrado na luta ao lado das
mulheres. São entrevistadas para o documentário ex-colaboradoras, como a
jornalista e ativista Letty Cottin Pogrebin, e as escritoras Patricia Carbine,
Jane O’Reilly e Marcia Ann Gillespie. A Ms. resiste ao tempo e continua no
mercado norte-americano. Grande filme do ano, também cotado para o Oscar de
2026, está disponível na HBO Max.
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