Criaturas da mente
Pernambucano de Recife,
o cineasta Marcelo Gomes já levou seus filmes para o mundo, desde os curtas exibidos
em festivais internacionais (‘Clandestina felicidade’, de 1998, é um dos que
mais gosto) aos longas memoráveis, que trouxeram nova linguagem para o cinema
brasileiro na pós-Retomada, como ‘Cinema, aspirinas e urubus’ (2005) e o meu
preferido, dirigido ao lado de Karim Aïnouz, ‘Viajo porque preciso, volto
porque te amo’ (2009) – depois Gomes fez uma coprodução Brasil/Portugal que
reconta a vida de Tiradentes, ‘Joaquim’ (2017), o documentário ‘Estou me
guardando para quando o carnaval chegar’ (2019), e dois dramas duplamente
premiados, ‘Paloma’ (2022) e ‘Retrato de um certo oriente’ (2024). Seu novo projeto,
tão pessoal quanto os anteriores, é o documentário que acaba de estrear nos
cinemas brasileiros ‘Criaturas da mente’ (2024), um estudo sobre o poder da
mente. O filme tem narração do próprio Marcelo e conduzido por um especialista
no assunto, o neurocientista e escritor Sidarta Ribeiro. É um debate entre
conhecimento científico versus saberes ancestrais dos povos originários e de
culturas afrodescendentes em torno do inconsciente e dos sonhos. Sidarta viaja para
regiões distintas do Brasil conversando com conhecedores do assunto, sobre os
limites da mente – ele entrevista o líder indígena, ativista e escritor Ailton
Krenak, a ialorixá e percussionista Mãe Beth de Oxum, o pesquisador Dráulio
Barros de Araújo e outros. Enquanto as discussões acontecem, imagens de filmes
de Marcelo Gomes, citados anteriormente, são postas na tela – e assim percebemos
o alinhamento de sua obra com as questões da mente, de como o cineasta já se
preocupava com a espiritualidade e a visão científica do inconsciente; seus personagens,
percebam, sempre refletem sobre a existência, a espiritualidade etc.
Produção assinada por João
Moreira Salles e Maria Carlota Bruno, da VideoFilmes, realizada em coprodução
com Globo Filmes e GloboNews, em associação com a Carnaval Filmes. Teve a première
nacional na abertura da 57ª edição do Festival de Brasília, em 2024, e está em
cartaz nos cinemas com distribuição da Bretz Filmes. Um bom filme para debate.
Memórias de um
esclerosado
Outro bom documentário
em cartaz nos cinemas brasileiros, ‘Memórias de um esclerosado’, grande
vencedor da 28ª edição do Cine PE, acompanha a reviravolta na vida do premiado cartunista
Rafael Corrêa após o diagnóstico de esclerose múltipla, em 2010. Nascido no Rio
Grande do Sul, com trajetória artística de quase 30 anos, com passagens por jornais
como Folha de S.Paulo e Zero Hora, Corrêa, criador do personagem de tirinhas
Artur, o arteiro, narra o filme como um livro aberto – ele conta, de forma
íntima, sobre o antes e depois da esclerose, lembrando a juventude feliz ao
lado de amigos e familiares, a carreira e a chegada da doença, trazendo arquivo
de fotos e vídeos caseiros dele. O diagnóstico o deixou perplexo e mudaria sua
rotina para sempre. A doença neurológica e autoimune afetou o lado esquerdo de Corrêa,
incluindo a mão que desenhava, o que o fez treinar com a outra. Mais do que
respostas, ele busca uma nova forma de lidar com sua arte, usando o cartum para
desenhos autobiográficos de sua relação com a enfermidade. O filme traz um
humor jocoso sobre suas limitações, e ele aqui, como narrador-personagem, cria
uma figura mítica, um indivíduo fantasiado de sapo, que sempre o questiona e
instiga – o animal é uma figura que o persegue desde criança, quando, sem
motivos, matou um sapo esmagado. Produção gaúcha, dirigida por Thais Fernandes
e pelo próprio Rafael, o filme demorou nove anos para ser feito, interrompido
pela pandemia da covid. Além das premiações no Cine PE, o doc ganhou como
melhor roteiro, montagem, desenho de som e trilha musical no 52º Festival de
Cinema de Gramado.
Dramático, com visível senso
de humor e incríveis transições entre imagens antigas, atuais e animações, é um
filme curiosíssimo, a se descobrir. Produção da Vulcana Cinema e Cena Expandida,
tem distribuição da Atelier W Produções Cinematográficas.

Lynch/Oz
Falecido
em janeiro desse ano, David Lynch (1946-2025), cineasta americano criador de
obras icônicas e complexas dos anos 80, 90 e 2000, como a série ‘Twin Peaks’ (1990-1991)
e os filmes ‘O homem elefante’ (1980), ‘Veludo azul’ (1986) e ‘Cidade dos sonhos’
(2001), era fã número 1 do clássico ‘O mágico de Oz’ (1939). A tal ponto de extrair
ideais do longa de Victor Fleming para compor o seu particular cinema, cultuado
por gente no mundo todo. ‘O mágico de Oz’ sempre o perseguiu a ponto de tirar
seu sono. Ao assistirmos esse estonteante documentário indie, ‘Lynch/Oz’ (2022),
entendemos como se deu essa relação do diretor/roteirista com o imbatível clássico.
Do primeiro curta-metragem que Lynch fez, ‘The alphabet’ (1969) até seus
últimos trabalhos, no caso o curta ‘What did Jack do’ e a continuação de ‘Twin
Peaks’, o seriado ‘Twin Peaks – O retorno’, ambos feitos em 2017, há algo
escondido de Oz ali. O doc, exibido nos festivais de Tribeca e Londres, é
dividido em seis capítulos, em que cineastas (como John Waters e Karyn Kusama) e
pesquisadores estudam as diversas camadas dos trabalhos de Lynch para traçar um
paralelo com a concepção visual, a trama e os personagens de ‘Oz’. Das cores fortes,
aos protagonistas perdidos em mundo estranho, os vilões excêntricos, a eterna
melancolia, tudo em Lynch nos transporta para a terra de magia de Oz. Além dos
mencionados filmes dele, outros como ‘Eraserhead’ (1977), ‘Duna’ (1984), ‘Coração
selvagem’ (1990), ‘Estrada perdida’ (1997) e ‘Império dos sonhos’ (2006) possuem
analogias àquela obra-prima dos anos 30, seja no sapato vermelho de personagens
parecidas como Dorothy, antagonistas caricatos como a Bruxa Má do Oeste, as rodovias
como a estrada de tijolos amarelos. ‘Lynch/Oz’ é imperdível, garanto. Escrito e
dirigido pelo documentarista Alexandre O. Philippe, que realizou outro filme impressionante
de bastidor, ‘78/52: A cena do chuveiro de Hitchcock’ (2017), em que analisa criteriosamente
uma das cenas mais famosas do cinema, a do chuveiro de ‘Psicose’ (1960), que mudaria
a forma de escrever histórias em Hollywood. Disponível gratuitamente na
plataforma Sesc Digital até o dia 19/05.
Nenhum comentário:
Postar um comentário