sexta-feira, 2 de maio de 2025

Especial de Cinema

Cinema Neo-noir

A Versátil Home Video acaba de lançar no mercado, em DVD, três boxes com filmes policiais e neonoir dos anos 90, contendo ao todo 18 longas-metragens - fotos abaixo. São eles 'Cinema policial Anos 90 - vol. 2', 'Cinema policial Anos 90 - vol. 3' e 'Filme Noir - Neonoir anos 90'. Dentre os filmes que compõem as caixas estão 'Jogo perverso' (1990), com Jamie Lee Curtis; 'Os imorais' (1990), com Anjelica Huston; 'Rush - Uma viagem ao inferno' (1991), com Jason Patric; 'O dono da noite' (1992), com Willem Dafoe; 'A testemunha ocular' (1992), com Joe Pesci; e 'Ligadas pelo desejo' (1996), com Jennifer Tilly. Em todos os boxes em DVD há quase duas horas de materiais extras. A Versátil também lançou um livro temático, 'Neo-noir- Filmes essenciais', com 72 páginas. Nele há 14 textos escritos por jornalistas e críticos de cinema convidados - um deles é o meu, sobre o filme 'Morte por encomenda' (1993), que segue abaixo, na íntegra.





'Red Rock – A cidade do engano'

Por Felipe Brida *
Deserto de Wyoming. Mike (Nicolas Cage, de ‘Despedida em Las Vegas’) acorda dentro de um carro velho à beira da estrada. Desorientado, está no banco do motorista, no meio do nada. Ele sai do automóvel, veste-se, corta a barba num cocho e faz flexões na pista onde não passa um veículo sequer. Volta para o carro e parte em direção a um campo de extração de petróleo, para uma entrevista de emprego. Mike contava com o trabalho, no entanto é dispensado por ter uma deficiência na perna, que o impede de se locomover com rapidez. Viaja então para uma cidade vizinha, localizada a 80 quilômetros a oeste, Red Rock, que possui cerca de 1500 habitantes.
Na primeira cafeteria que avista, entra e é recebido no balcão pelo proprietário, Wayne Brown (J.T. Walsh, de ‘Breakdown: Implacável perseguição’). Ao conversar com Mike, Wayne o confunde com um matador de aluguel que teria sido contratado por ele, por telefone, para matar sua esposa; Mike afirma ser ele o tal cidadão, fingindo ser o cara que era para ter chegado lá há dias e não apareceu. Como precisa de grana, aceita cometer o assassinato, que vale 10 mil dólares. O plano aparentemente dará certo, Mike recebe metade em dinheiro vivo, e passa a seguir os passos da mulher de Wayne em seu rancho particular – ela se chama Suzanne (Lara Flynn Boyle, de ‘Quanto mais idiota melhor’). Mike invade a fazenda, e quando Suzanne chega, aborda a mulher com uma arma. Em vez de matá-la, para para ouvir a contraproposta dela – Suzanne oferece o dobro para Mike matar o marido. Sem pairar qualquer dúvida, aceita. Só que resolve fugir num estalo com o dinheiro, sem matar ninguém. No caminho, atropela um homem, e um carro que vem atrás estaciona para ajudar Mike. Do veículo sai o verdadeiro matador de aluguel, Lyle, de Dallas (Dennis Hopper, de ‘Sem destino’), um homem que fala muito e se veste de maneira excêntrica – e atrasado para seu serviço. Mike aceita a ajuda, jamais imaginando quem seria aquela pessoa. Já é tarde da noite, Lyle dá carona para Mike e leva-o a um bar. O rapaz, que só queria fugir com a dinheirama, leva um choque com uma dupla surpresa: descobre que Wayne, além de ser dono dos cafés e dos bares da cidadezinha, inclusive o bar em que está, é xerife do local, que manda e desmanda, e que Lyle é o indivíduo que ele fingiu ser. A partir daí, Mike se complica, restando a ele escapar daquele lugar tomado pela corrupção e violência.




‘Morte por encomenda’ (1994) foi um ponto alto na carreira do cineasta norte-americano John Dahl, que começou dirigindo videoclipes nos anos 80, depois teve uma fase com longas-metragens policiais e de suspense entre os anos 90 e 2000 – muitos deles neonoir – e de 2005 até hoje apenas dirigindo séries televisivas e telefilmes.
Dahl entende o cinema noir e escreve roteiros com estilo e vigor. Dos sete filmes que dirigiu, cinco orbitam o universo neonoir – o longa de estreia, “Mate-me outra vez” (1989, com Val Kilmer e Joanne Whalley), sobre um rapaz que se envolve com uma mulher fatal e tem de fugir tanto de um assassino quanto de mafiosos; seu segundo filme, “Morte por encomenda” (1993); “O poder da sedução” (1994, com Linda Fiorentino e Bill Pullman), sobre uma mulher sensual que rouba um dinheiro escuso de bandidos e foge em busca de uma vítima para seu novo plano; “Inesquecível” (1996, com Ray Liotta e Linda Fiorentino) - um policial noir com ficção científica, sobre um suspeito de ter matado a esposa que faz uma experiência médica para estudar as memórias da falecida; e “Cartas na mesa” (1998, com Matt Damon e Edward Norton), a história de um ex-jogador de pôquer que, para ajudar um amigo que saiu da cadeia, volta aos jogos a fim de recuperar um dinheiro perdido. Grande parte desses filmes de Dahl trazem elementos fundamentais do neonoir, o noir moderno, como mulheres fatais (a figura clássica da Femme fatale tem no neonoir variações, como mulheres perdidas, abandonadas ou viciadas, não necessariamente envolvidas com crime e que de certa maneira empurram os homens para situações de risco); protagonistas fragilizados (por problemas financeiros, dependência de drogas ou bebida, desempregados, atormentados por erros do passado ou traídos pela esposa), que agem de maneira inconsequente e por vezes violenta, portanto, carimbados como anti-heróis; um clima austero de decadência moral; ambientes marginais onde há corrupção e o crime; reviravoltas que negam ou distorcem os acontecimentos até então apresentados; desfechos trágicos. O neonoir é uma inspiração/adaptação do estilo noir francês e americano que retorna a Hollywood com brilhantismo a partir dos anos 80 e produzido com frequência até o fim dos anos 90 – nas décadas o neonoir ainda aparece, é uma ideia de cinema que nunca morreu. Em seu livro ‘Neo-noir: Contemporary film noir from Chinatown to The Dark Knight’ (2010), Douglas Keesey destaca que os componentes do velho cinema noir, como os de filmes de gângsters, migrou para o cinema policial, de suspense e de serial killers nos anos 80e décadas seguintes, fazendo surgir híbridos como psico-noir, visto em ‘Amnésia’ (2000), tecno-noir, em ‘Matrix’ (1999), e superhero noir, em ‘Sin City: A cidade do pecado’ (2005) e ‘Batman - O cavaleiro das trevas’ (2008). O neonoir, segundo Keesey, traz novas discussões para o mundo contemporâneo, ampliando os dilemas dos personagens que enfrentam outros conflitos em um mundo em rápida e plena transformação.
Em ‘Morte por encomenda’, Dahl abre a caixa de ferramentas do noir realizando um filme policial sólido, com personagens fortes, todos eles imbricados no crime, colocados contra a parede, em situações de desespero, e com pouca possibilidade de sobrevivência: do rapaz desempregado que monta uma farsa para se dar bem passando pelo xerife sem escrúpulos, chegando até a mulher que guarda segredos e seria alvo de tiros e finalizando com o matador de aluguel de vestes extravagantes. Os quatro personagens representam o colapso, a crise, a imoralidade, o desajuste na sociedade.
Há em ‘Morte por encomenda’ subtramas que requerem atenção, como a de Kurt, um rancheiro baleado, o affair entre Mike e Suzanne e o caso do roubo milionário à siderúrgica.
O filme tem conexões com outros dois neonoir primorosos lançados em 1981, ‘O destino bate à sua porta’ (de Bob Rafelson) e ‘Corpos ardentes’ (de Lawrence Kasdan) – o primeiro é a versão do noir clássico de 1946. E claro, com ‘Gosto de sangue’ (1984), dos irmãos Coen. Nesses três longas, há um plano infalível e aparentemente fácil de assassinato, em que o marido contrata para alguém matar a esposa ou vice-versa. Mas nenhum crime é perfeito, sempre alguma pista é deixada para trás...




Nos filmes noir e neonoir, e em ‘Morte por encomenda’ não seria diferente, os personagens estão esgotados da vida, vivem a chamada ‘Síndrome do Cansaço do Mundo’, em inglês ‘World-weary Syndrome’, querem sumir, precisam de algo que os motivem pelo menos por um momento. Também em ‘Morte por encomenda’ há a figura do ‘homem errado’, que as vezes aparece no noir e, só para destacar, foi uma recorrência no cinema de Hitchcock – Mike, papel de Nicolas Cage, é o homem ferrado, que se aproveita da ocasião para se passar por um assassino e pegar uma boa grana, porém a ideia será um inferno. Ele é um típico anti-herói, que engana os outros, se engana e se corrompe.
A parte técnica do filme abrilhanta o roteiro – há uma curiosa mescla de ‘temperaturas’ com cores opostas, que vai do amarelo quente do deserto ao azul enevoado na perseguição na floresta e também no fascinante desfecho no cemitério.
Rodado no Arizona, com orçamento de U$ 8 milhões, repercutiu no cinema alternativo, exibido no Festival de Toronto e indicado em duas categorias ao Film Independent Spirit Awards, de direção e roteiro. Aliás, o roteiro foi elaborado por John Dahl ao lado do irmão, Rick Dahl - Rick só escreveu esse filme, foi assistente de diretor do irmão em ‘Mate-me outra vez’ (1989) e fez a produção executiva com ele de ‘Inesquecível’ (1996).
* Felipe Brida é jornalista, crítico de cinema e professor. Nascido e residente em Catanduva (SP), é autor do livro “Cinema em Foco: Críticas selecionadas” (2013). Mantém o blog Cinema na Web (de sua autoria, criado em 2008), além da coluna semanal “Cinema em Foco” (no jornal O Regional) e das colunas mensais “Middia Cinema” (na Revista Middia) e “Top Cinema” (na revista Top). Conduz os quadros semanais “Cinema em Foco” (na rádio Vox FM - Catanduva), “Mais Cinema” (na Nova TV/TV Brasil) e “Palavra do Especialista – Cinema” (na rádio Câmara de Bauru, em Bauru/SP). É professor de Cinema, Comunicação e Artes no Senac, Fatec e Imes Catanduva e atua como palestrante, júri e curador em festivais de cinema em todo o Brasil. Jornalista formado pela Unirp – São José do Rio Preto, é mestre em Linguagens, Mídia e Arte, pela PUC-Campinas, e tem duas pós-graduações - em Artes Visuais, pela Unicamp, e em Gestão Cultural, pelo Centro Universitário Senac/SP. Colaborou com a Versátil escrevendo em ensaios em dez livros, como “Slashers”, “Cinema policial”, “O cinema da Nova Hollywood” e “Clássicos Sci-fi”.

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