Resenha do filme "Amargo regresso" (1978), escrita especialmente para o livro "Nova Hollywood - Filmes essenciais do movimento", lançado pela Versátil Home Video em abril de 2023. Livro disponível para venda no site da Versátil, em https://www.versatilhv.com.br/produto/livro-o-cinema-da-nova-hollywood-filmes-essenciais-do-movimento/5437487
Na ala de um hospital onde estão feridos de guerra, um grupo de
ex-combatentes do Vietnã joga bilhar. Dois ou três estão em cadeira de rodas,
outros na maca. Até que um deles lança a pergunta que abre um duro debate:
“Você voltaria ao Vietnã?”. A discussão é acalorada, nunca se chega a um
consenso. O sargento Luke Martin (Jon Voight) apenas escuta os pontos de vista
dos colegas e paulatinamente fica imóvel, com olhar vago, para baixo, para o
nada.
A descrição acima é a abertura de um dos filmes mais notórios da Nova
Hollywood, talvez o mais comentado da carreira de Hal Ashby e que bem retrata
os soldados americanos que voltaram com sequelas da infame guerra do Vietnã.
Muitos filmes, principalmente os realizados nos Estados Unidos, trataram
dos fuzileiros no campo de guerra em solo vietnamita, com enfoque nos homens com
nervos de aço atirando para matar, como “Os rapazes da Companhia C” (1978), “Rambo
II – A missão” (1985), “Platoon” (1986), “Nascido para matar” (1987) e “Comando
de heróis” (1989). Já as produções que falam do retorno dos soldados dessa
guerra injusta, cruel e complexa são escassas. Três obras são fundamentais
nesse segundo tema: “Amargo regresso” (1978), “O franco atirador” (1978) e
“Nascido em 4 de julho” (1989) – o primeiro foi lançado em fevereiro de 1978,
enquanto o segundo saiu em dezembro do mesmo ano, e entre “Amargo regresso” e
“Nascido em 4 de julho” há uma série de convergências e semelhanças, que vou detalhar
em outro tópico.
“Amargo regresso” se passa em 1968, ano crucial da guerra, pois se
evidenciavam avanços de paz para o fim do conflito – a Guerra do Vietnã começou
em 1955 e se estendeu até 1975, considerada uma guerra desproporcional e
insana, que matou 58 mil americanos e 1,1 milhão de vietnamitas e vietcongues
(há historiadores que defendem que o número de vietnamitas mortos pode chegar a
3,5 milhões). Foi a guerra do temível napalm, do destruidor fósforo branco e do
ardiloso agente laranja, no meio das selvas e áreas alagadas.
Só que “Amargo regresso” não trata de nada disso. Os personagens que
combateram na guerra já estão de volta. A perspectiva é outra. É o retorno dos
chamados “sequelados”, sejam os que tiveram pernas amputadas ou que
apresentavam problemas motores, ou mesmo os que voltavam traumatizados, com
processos de alucinação e depressão graves, que enlouqueciam nos corredores dos
antigos manicômios.
Na história, conhecemos o sargento citado anteriormente, Luke Martin
(Jon Voight), que ficou paraplégico na guerra. Ele está no hospital, aos
cuidados de uma enfermeira, Sally (Jane Fonda), cujo marido, o oficial da
Marinha Bob Hyde (Bruce Dern), ainda não regressou do Vietnã. Sally e Luke se
apaixonam, iniciam um relacionamento às escondidas, até que Bob retorna, o que
irá revirar a vida dos três.
O trio trava uma guerra particular, dentro de uma bolha de
complexidades. Todos são impactados por uma mudança drástica de vida e
trajetória. Bob está atormentado, queria que a guerra fosse de outro jeito, não
aceita a derrota e aos poucos descobre a traição da esposa; Sally está
emocionalmente entregue ao amante, tem de se dividir entre dois homens de comportamentos
distintos; e Luke, que sem poder mexer-se da cintura para baixo, precisa se
adequar a uma nova realidade em sua cadeira de rodas.
O personagem de Luke, assim com o de Sally e Bob, têm muitas camadas.
Luke, que é um símbolo da sobrevivência de uma guerra, representa também as
barreiras e os preconceitos que os deficientes físicos encontravam. Há cenas espaçadas
ao longo do longa-metragem em que Luke se vê em dificuldades para se locomover
em espaços públicos, e na sequência do supermercado, por exemplo, é alvo de
pessoas sem empatia, com olhares “tortos” sobre ele. Ainda no mercado o
personagem não consegue empurrar o carrinho de compras e nem passar pelos
corredores estreitos, até que três crianças o ajudam. O filme menciona de forma
rápida, mas esperta e até crítica, a questão da acessibilidade.
Há outras cenas belíssimas: ainda nessa do mercado, Luke põe uma das
crianças no colo, na cadeira de rodas, e anda pelos corredores; o suicídio de
um ex-combatente atormentado, que injeta ar na veia do braço com uma seringa,
enquanto os colegas cadeirantes não conseguem abrir a porta para salvá-lo; a de
Sally no colo de Luke, dando voltas na cadeira de rodas pelo hospital (sequência
que se transformou na capa do filme no Brasil e nos Estados Unidos); a transa
de Luke e Sally, com closes íntimos iluminados pela fotografia estonteante e
naturalista de Haskell Wexler, e com direito a uma sutil cena de sexo oral, que
encabulou a Motion Picture Association a ponto de a associação classificar o
filme como R-rating (abaixo falo mais nas “curiosidades”); e a do encontro
derradeiro entre Sally e Luke com Bob, que carrega consigo um fuzil com
baioneta.
A trilha sonora é de uma delicadeza ímpar. Ela ajuda a compor o drama que
aos poucos assume ares românticos e discute temas como readaptação, as
consequências da guerra, o amor, os novos encontros da vida. Músicas notórias
da metade dos anos de 1960 (já que o filme se passa em 1968) embalam os
personagens em suas andanças, como “Out of time” (de Rolling Stones),
“Bookends” (de Simon & Garfunkel), “Follow” (de Richie Havens) e “Born to
be wild” (de Steppenwolf), “For what it's worth” (de Buffalo Springfield) e
“Once I was” (de Tim Buckley).
“Amargo regresso” fez muito sentido para a época e ainda hoje continua humanista,
com mensagem antiguerra/antibélica.
O roteiro e a construção de Luke Martin
O personagem Luke Martin foi inspirado em Ron Kovic (1946-), fuzileiro
norte-americano que serviu o Vietnã. Aos 22 anos, em 1968, quando liderava um
ataque a uma aldeia no norte do Vietnã, levou um tiro que ocasionou em uma
lesão medular, que o paralisou do peito às pernas. Um de seus colegas tentou
salvá-lo, mas morreu baleado. Ficou por uma semana em uma enfermaria,
recuperou-se e depois virou escritor, além de se engajar em movimentos
ativistas pela paz mundial (até hoje participa de encontros e manifestações
dessa natureza), por isso já foi preso uma dezena de vezes em protestos
políticos. Em 1976 publicou seu livro de memórias sobre o Vietnã que se
tornaria emblemático a ponto de ganhar versão para cinema: “Nascido em 4 de
julho”, exímio retrato das consequências dessa guerra infernal para os que
foram lá lutar – Oliver Stone, que lutou no Vietnã, escreveu o roteiro baseado
no livro e fez um punhado de longas-metragens sobre o tema, como “Platoon”
(1986) e “Entre o céu a e terra” (1993).
Quem dá vida a Ron Kovic em “Nascido em 4 de julho” é Tom Cruise, num papel
magistral que lhe rendeu a primeira indicação ao Oscar.
Jane Fonda conheceu Ron Kovic em protestos e se tornaram amigos (a atriz há mais de 50 anos é ativista e luta por diversas causas, de movimentos feministas àqueles contra a guerra e também àqueles que tratam da crise climática). Daí surgiu a ideia do filme (Jane era influente na indústria do cinema, já tinha um Oscar e era filha do imponente ator Henry Fonda). Jane pediu à roteirista Nancy Dowd, de “Vale tudo” (1977), uma história romântica no contexto da Guerra do Vietnã. Então Nancy bolou o argumento e esboçou um roteiro de 250 páginas, apresentando-o a Jane. O elenco foi selecionado, havia tudo preparado para as gravações, e o diretor seria John Schlesinger (de “Perdidos na noite”). Porém o projeto não seguiu, porque o roteiro era considerado polêmico demais, com forte comentário político (a guerra havia terminado há menos de três anos, e ainda dividia a opinião pública). O produtor Jerome Hellman e o roteirista Waldo Salt, que trabalharam juntos em “Perdidos na noite” (1969), chamaram Jon Voight, também de “Perdidos”, para uma reunião. O filme sairia, no entanto o roteiro de Nancy Dowd sofreria mudanças. Waldo Salt reescreveu o texto com Robert C. Jones, montador indicado a três Oscars, de filmes como “Adivinhe quem vem para jantar” (1967) e “Love story: Uma história de amor” (1970) – Jones iria supervisionar também, pois serviu no Vietnã e conheceu a guerra de perto. E por fim, chegaria Hal Ashby, o novo diretor em vista para o projeto, que vinha de fitas premiadas e elogiadas por público e pela crítica, como “Ensina-me a viver” (1971), “A última missão” (1973) e “Shampoo” (1975). A ideia central da história permaneceu, retiraram os aspectos políticos, e fixaram a trama nas dificuldades dos veteranos que voltavam da guerra.
Curiosidades da produção
- Três atores foram cotados para o papel de Luke Martin antes de Jon Voight: Sylvester Stallone, Jack Nicholson e Al Pacino.
- O filme custou U$ 3 milhões e rendeu U$ 32,6 milhões de bilheteria, um bom número para um drama naquela época.
- Jon Voight conta no making of que acompanha o filme “Amargo regresso” em DVD, lançado pela Versátil, que o longa presta um tributo aos jovens que estiveram no Vietnã, e assim o cinema serviria para uma espécie de cura aos sobreviventes.
- A cena de abertura, dos veteranos conversando enquanto jogam bilhar, não estava no script original. São seis veteranos reais do Vietnã que ficaram paraplégicos, e nessa sequência eles trazem seus pontos de vista sobre a guerra – Jon Voight é o único ator em cena, e apenas ouve enquanto eles conversam, sem opinar.
- Jon Voight conta no making of que para representar bem o papel do sargento paraplégico, treinou em cadeira de rodas atlética com um time de basquete de cadeirantes em Long Beach. Diz que passou a fazer tudo por meses com a cadeira de rodas, para se acostumar e absorver o máximo de realidade de um deficiente. Conta que aprendeu a ver a dor, as dificuldades e a rotina dos cadeirantes.
- O filme recebeu censura R-rating na época, por conter uma cena de sexo oral entre Jon Voight e Jane Fonda - mesmo sem ser explícita ou aparecer algum personagem nu total, a Motion Picture Association apontava “conteúdo sexual”, ou seja, o filme era para maiores de 17 anos.
- Originalmente da MGM, “Amargo regresso” venceu três Oscars, de melhor atriz para Jane Fonda, melhor ator para Jon Voight e melhor roteiro original - e indicado ainda a cinco outros no Oscar de 1979: melhor filme, ator coadjuvante para Bruce Dern, atriz coadjuvante para Penelope Milford, diretor e edição; Voight ganhou o de ator no Festival de Cannes (o filme concorreu à Palma de Ouro), e tanto ele quanto Jane levaram os prêmios de ator e atriz de drama no Globo de Ouro.
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