Resenha do filme "Possessão" (1981), escrita especialmente para o livro "Obras-primas do terror - Treze filmes essenciais da coleção", lançado pela Versátil Home Video em março de 2023. Livro disponível para venda no site da Versátil, em https://www.versatilhv.com.br/produto/livro-obras-primas-do-terror-treze-filmes-essenciais-da-colecao/5430961
Quando apresentado ao público pela primeira vez, no Festival de Cannes
de 1981, em 25 de maio, “Possessão” (1981) levou parte dos espectadores à
euforia, enquanto outra desviou o olhar das cenas mais grotescas e chocantes,
vaiando o filme do ucraniano/polonês Andrzej Zulawski. Naquele noite, havia
expectativa de o filme arrancar boas críticas dos presentes e também da
crítica, porém isso não ocorreu. Na época, “Possessão” foi mal interpretado,
tido como uma obra rebelde, com imagens polêmicas que beiravam a repulsa pelo
conteúdo de sangue explícito, momentos escatológicos e estranhos demais, até
uma cena de sexo entre uma mulher e uma criatura gosmenta. O festival acabou, o
filme foi lançado poucos cinemas, em um pequeno circuito em cerca de 30 países,
e rapidamente tornou-se cult – o fato se repetiria anos depois com o home vídeo
e mais adiante com o dvd, em que muita gente teve acesso ao filme.
É uma obra difícil e ao mesmo tempo a mais notória do universo
cinematográfico do sempre controverso diretor Andrzej Zulawski (1940-2016). Escreveu
o roteiro durante o processo de seu divórcio, com colaboração do romancista
norte-americano Frederich Tuten. Por isso, há uma gama de elementos
autobiográficos do cineasta, que foca o desespero de dois personagens: a de mulher
desiludida com o casamento, que foge em busca de novos parceiros, e a do marido
abandonado, numa busca infernal por ela, na tentativa de trazê-la de volta para
casa. Essa é a premissa básica de “Possessão”, que é um drama doloroso, porém
com ganchos do cinema de horror, um horror mais psicológico – há sim imagens
violentas, de mortes brutais e sangue vivo, e ainda monstros, no entanto isso
tudo é secundário no teor desse filme sobre casamento em ruínas.
A francesa Isabelle Adjani, de “Nosfertu, o vampiro da noite” (1979) e
“A rainha Margot” (1994), interpreta Anna, essa mulher que está prestes a
explodir e não vê mais sentido na vida a dois. Por isso, acaba escapando vez ou
outra, e aos poucos entendemos que ela procura outros homens. O marido, Mark,
papel do neozelandês Sam Neill, de “Terror a bordo” (1989) e “Jurassic Park – O
parque dos dinossauros” (1993) – repare que o filme é bem eclético, com atores
e diretor de diversos países, e “Possessão” é uma coprodução França e Alemanha
Ocidental, percebe a mudança de comportamento dela, a questiona, chegam a
brigar e quando o divórcio é sugerido, ele não aceita o fim do relacionamento,
tanto por amar Anna quanto pensando no pequeno filho que ambos têm. Sufocada,
Anna foge, e Mark passa dias perambulando pelas ruas para encontrá-la.
Sufocada, ela adoece, passa a ter momentos de fúrias, e o marido também. Mark
descobre um dos casos da esposa, com Heinrich (Heinz Bennett - de “O último
metrô”, de 1974, e “O ovo da serpente”, de 1977), então começa a vigiá-lo e a
se corresponder com a mãe do cidadão. Até que Anna frequentemente é vista numa
região degradada, com edifícios antigos, descascados, e sem moradores nos
arredores. É num dos quartos decrépitos de um dos prédios que surge um caso
inesperado de Anna, com uma criatura com rabo e traços humanos. Ela se deita
com esse ser insaciável, para longas tardes e noites de sexo. A pergunta fica
e, como espectadores, somos sempre indagados: o que está acontecendo com Anna e
com Mark?
Os filmes de Zulawski dialogam com países em guerra, divididos e
invadidos, com personagens sufocados em constante alucinação, e o diretor ainda
insere ares profanos – eu vejo “Possessão” como a última parte de uma trilogia
de filmes vendidos como “terror”, mas que são dramas contundentes e simbólicos,
que trazem o horror psicológico como forma de questionar estruturas, sistemas e
identidades; trilogia porque começaria com “A terça parte da noite” (1971), que
se passa na Polônia ocupada pelos nazistas e tem como protagonista um jovem
infectado com tifo que sofre devaneios quando se muda para a casa de uma mulher
grávida parecida com a esposa morta; no ano seguinte viria “O diabo” (1972), filme
banido da Polônia, com trama na Polônia invadida pelos prussianos em 1793 e lá
um prisioneiro político segue um desconhecido que o apresenta a um mundo
dominado pelo caos e por degradações cruéis; e finalmente “Possessão”, cuja
história é na Guerra Fria, na Berlim dividida (o filme não deixa claro onde e
quando se passa a trama, mas se percebem nomes alemães, como Anna, Heinrich,
Zimmerman e Margit, por exemplo). Os três filmes têm semelhanças no roteiro, na
construção dos personagens, nos enquadramentos e em outros pontos técnicos.
Zulawski gera em nós, espectadores, um incômodo permanente devido ao
enquadramento, que joga a câmera no rosto dos personagens e vai seguindo com
eles atrás, formando imagens corridas, trepidadas, em constante movimento. Há
plongée, contraplongée, os personagens ficam confinados em lugares fechados,
sempre com as paredes apertadas (uma metáfora da tensão do casamento, do
aprisionamento do lar), para trazer à tona a alma de uma mulher ferida e
desiludida com o marido, que aos poucos perde a sanidade a ponto de cometer
crimes. Numa cena emblemática, e a mais lembrada, Anna tem um ataque de fúria
no metrô vazio, como se fosse uma possessão, onde destrói as sacolas de compras
do mercado na parede, estilhaçando garrafas de leite. Debate-se na parede e no
chão, até sangrar por todos os poros e orifícios, numa espécie de aborto. É uma
sequência que choca, constrange, de quase 3 minutos, de pura gritaria e torpor
(a banda de trip hop inglesa Massive Attack adaptou a cena para o clipe da
música “Voodoo in my blood”, em 2016, com Rosamund Pike na pele da personagem,
com vestido parecido e tendo um ataque no metrô, enquanto é controlada por uma
bola robótica voadora). Isabelle Adjani conta que ficou perturbada durante o
processo de criação da personagem, demorou anos para superar Anna. Na época
estava no auge da carreira e da beleza e ganhou o prêmio de melhor atriz em
Cannes pelo trabalho em “Possessão” – na verdade, ela ganhou dois em Cannes,
também pelo papel de Marya, em “Quarteto de paixão” (1981).
Rodado inteiramente em Berlim Ocidental (lembrando que era Guerra Fria,
e Berlim Oriental estava barrada pelo muro), há muitas cenas que trazem o
contraste da cidade moderna (quando as sequências são no bonito aparamento de
Mark) com a parte decadente (onde Anna se encontra com o monstro – essas cenas
foram rodadas no bairro turco de Kreuzberg, uma área devastada). São três
aparições do monstro, bem rápidas, que proporcionam um choque visual imediato,
devido às poéticas do horror contemporâneo – o efeito se dá graças ao trabalho
do mestre em efeitos visuais Carlo Rambaldi, criador de “Alien, o oitavo
passageiro” (1979) e “E.T. – O extraterrestre” (1982), pelos quais ganhou o
Oscar na categoria.
Banido do Reino Unido, lá tachado de “filme nasty” e só liberado pelo British
Board of Film Classification em 1999, foi censurado nos Estados Unidos também,
saindo no mercado com quase 40 minutos a menos, em que foram retiradas as cenas
de violência e depravação.
Há outras simbologias e poéticas de linguagem no perturbador filme de
Zulawski. Quando assume aspecto de thriller de espionagem, da metade com a
aparição de outra figura elementar, a da professora do filho pequeno (a mesma
Isabelle Adjani), até o desfecho com as sirenes e explosões, o diretor faz um
comentário crítico e social sobre a Guerra Fria, sobre o medo do ataque nuclear
que rondava o pensamento de muita gente. Grande parte das locações estava a 10
metros do muro de Berlim, e conta-se que a equipe técnica era constantemente
vigiada pela polícia do Oriente, ou seja, do outro lado do muro, no entanto
havia aprovação e respaldo das gravações pelo Senado de Berlim.
No documentário “The other side of the wall: The making of
‘Possession’”, de 2011, dirigido por Daniel Bird (que está como extra do filme
“Possessão” no box Obras-primas do cinema - Volume 11), o diretor Zulawksi,
além de contar sobre o seu processo de divórcio que inspirou a ideia do filme,
narra sobre o aspecto político da obra: um diretor que viveu sob a perseguição
do regime comunista, viu a sovietização da Polônia e os rumos atrozes a que seu
país natal foi levado. Discute, no documentário, muito sobre o mal espalhado ao
redor dos personagens, o mal que espreita e vigia, e muito se deve às
consequências do momento político da Guerra Fria entre os anos de 1950 e 1980.
O muro de Berlim aparece em vários lances, e há cenas da Berlim Oriental toda
destruída, como forma de relacionar a ideia de ruína arquitetônica com a
decomposição da alma dos dois personagens centrais da história. E aliado a isso
está a criação de todo um clima de desconfiança, medo e agonia entre as figuras
do filme.
Zulawski conta ainda no documentário que “Possessão” teve vaias e
aplausos em Cannes, dividiu o público e a crítica, e não teve a repercussão
como esperado. Relata que pouca gente entendeu o sentido da obra, do que ele
quis realmente dizer (é complexo até hoje). A Palma de Ouro foi para outro
filme de cunho político, “O homem de ferro”, de Andrzej Wajda, e Zulawski
afirma que ficou feliz pelo prêmio a Wajda.
“Possessão” tem uma trilha sonora moderna e sinistra, fundamental para o
clima de estranheza da trama, assinada pelo polonês Andrzej Korzynski, com quem
o diretor Zulawski havia trabalhado em “Globo de prata” (1988), “A fidelidade”
(2000) e “Cosmos” (2015) – ele usa sons de objetos tilintando e assovios que
arrepiam!
Quem assina a produção é uma mulher, a francesa Marie-Laure Reyre, de
“Olivier, Olivier” (1992), que com coragem e muita audácia fez de “Possessão”
se transformar em uma obra única, complexa, sugestiva e altamente criativa.
Capa, sumário e texto de "Possessão" no livro da Versátil
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