sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Na Netflix


Não olhe para cima

Os cientistas Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) descobrem que um meteoro está em direção à Terra e que dentro de seis meses ele poderá acabar com a humanidade. Eles recorrem às emissoras de TV e às redes sociais para alertar a população, bem como marcam encontros com a presidente dos Estados Unidos, Orlean (Meryl Streep), para pensar formas de amenizar o desastre, no entanto sempre são recebidos com hostilidade e desconfiança.

Há uma semana que o assunto do momento é o filme “Não olhe para cima”, a nova produção da Netflix que bateu recordes de público: até ontem estava como top #1 da Netflix no mundo, ranking ocupado em praticamente todos os países, com mais de 111 milhões de horas assistidas somente no final de semana de estreia (de 24 a 26/12) - e esse número só tende a crescer, caminhando para ser um dos três filmes mais vistos na Netflix de todos os tempos (‘Birdbox: Caixa de pássaros’ ainda é o líder, com 282 milhões de horas assistidas). Isso comprova a força do marketing viral (boca a boca), onde um fala para o outro assistir, sem contar a divulgação e a publicidade em massa sobre o filme nas redes sociais.
“Não olhe para cima” é isso tudo? Eu achei o máximo, diverti-me à beça, atento aos detalhes, e enquanto assistia fazia as relações com a política no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países que seguem a cartilha do reacionarismo e da extrema-direita. Nessa altura do campeonato todos sabem que é uma comédia com pano de fundo de disaster movie, sobre um meteoro que viaja em direção ao planeta Terra, e que os cientistas que fizeram a descoberta são desacreditados. A trama tem tudo a ver com o que passamos hoje na pandemia da Covid, e olha que o roteiro foi escrito por Adam McKay (o diretor do filme) bem antes do coronavírus estar entre nós: ele falava inicialmente sobre a crise climática, e o meteoro era uma metáfora disso. Mas com a Covid, o filme não pôde ser gravado, e a Netflix adquiriu os direitos para a produção em abril de 2020. O tema teve um novo contorno, a crise do coronavírus, que se aplica bem ao longa-metragem, ou seja, houve um “desvio de rota”, e o que era para criticar a questão ambiental, ganhou um viés ainda mais aplicável e atual.


O filme é um raio-X sobre a política nos países de extrema-direita, como o Brasil de hoje e o EUA de Trump. É fácil notar personagens da vida real ali, como Trump, Bolsonaro e a família dele, bem como um séquito de negacionistas da ciência, de falsos cientistas, da imprensa comprada e de gurus políticos, além do descalabro que a rede social se transformou na mão deles.
A dupla de cientistas do filme (DiCaprio e Jennifer, ambos bons e indicados ao Globo de Ouro pelos papéis) tentam a todo custo convencer as pessoas e a presidente da República sobre o futuro da humanidade, já que o meteoro será devastador. Ninguém dá ouvidos, quem deveria dar a lição seria a mandatária maior da nação, mas ela é uma negacionista de carteirinha e zombeteira (outra cópia dela é o filho, interpretado por Jonah Hill, que faz um assessor direto da presidência, um troglodita abobalhado e não menos anticiência). A presidente (olha a coincidência que vemos no Brasil) chega a usar as redes sociais para abrir um debate sobre a verdade do meteoro, se os americanos são favoráveis ou não à tese dos cientistas – e daí lançam a campanha “Não olhe para cima” (ou seja, não vejam o meteoro, olhem para frente e sigam suas vidas). Tal ideia representa bem a política do absurdo total da extrema-direita, encabeçada por um bando de gente enganosa e despreparada, fascistóides de plantão, que com métodos desordeiros tumultuam e dividem as pessoas com suas teses malucas – o “Não olhe para cima” é o “Não use máscaras” e o “Não se vacine”.


O filme é radiográfico e contém as caricaturas do mundo político contemporâneo, com figuras da anticiência que espalham fake News em nome da ‘liberdade de expressão’ (percebem que na boca desse pessoal tudo é ‘liberdade’, tudo pode ser falado e divulgado, o que os faz confundir liberdade de expressão com crime).
É uma sátira inteligente que devasta e incomoda, e procura alvos claros como bolsonaristas e trumpistas (muitos deles assistiram, mas pelos comentários que vejo nas redes, não entenderam direito a crítica e a mensagem ali expressa). Mensagem essa que trata da imbecilidade dos tempos sombrios que vivemos, da mentalidade obtusa da extrema-direita que nega, grita, xinga e defende absurdos em nome do bem coletivo.
Adam McKay acerta novamente e há nele um bom ajuste a cada filme – ele começou quase vinte anos atrás com “O âncora” (2004) e se dedicou a filmes políticos com fino humor, baseados em fatos reais, como “A grande aposta” (2015 – pelo qual ganhou o Oscar de roteiro adaptado), sobre o estouro da bolha imobiliária americana, e “Vice” (2018), que biografa Dick Cheney, vice-presidente na era Bush filho.


Além da indicação ao Globo de Ouro de ator e atriz que já mencionei, recebeu ainda indicação de melhor filme – comédia ou musical e melhor roteiro, e deverá ser finalista do Oscar 2022.
Ah, não desligue a TV até o final dos créditos, pois existem duas cenas escondidas, bem curtinhas e engraçadas.

Não olhe para cima (Don’t look up). EUA, 2021, 138 minutos. Comédia. Colorido. Dirigido por Adam McKay. Distribuição: Netflix

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