quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Resenha Especial


Conhecendo o cinema de Leni Riefenstahl - parte 1

A luz azul

Nas noites de lua cheia, uma misteriosa luz azul brilha no alto de uma montanha. Ao longo dos anos, os moradores de uma vila próxima escalam até o pico para checar o estranho acontecimento, mas nunca retornam de lá. Junta (Leni Riefenstahl), uma mulher solitária, chega ao vilarejo e consegue se aproximar da luz. Então é considerada uma bruxa, tornando-se alvo de fanáticos; revoltados, homens e mulheres do vilarejo a culpam pelas mortes das pessoas que nunca voltaram da montanha e saem para caçá-la.

Primeiro filme autoral de Leni Riefenstahl (1902-2003), a controversa cineasta alemã admirada por Adolf Hitler e que trabalhou anos a fio com ele. Ela produziu ‘A luz azul’, escreveu o roteiro - baseado numa novela de Gustav Renker, dirigiu, editou e atuou na pele da protagonista, Junta, uma mulher tida como bruxa e que passa a ser perseguida por fanáticos – Leni era bonita e muito inteligente. Na época, tinha apenas 29 anos, e fez o roteiro junto de Carl Mayer, roteirista austro-húngaro que escreveu filmes do Expressionismo Alemão, como ‘O gabinete do Dr. Caligari’ (1920) e ‘A última gargalhada’ (1924). Por isso ‘A luz azul’ traz fortes traços do Expressionismo, com uma trama de fantasia, personagens grotescos e estética estilizada nos enquadramentos e nos grandes cenários fotografados na penumbra, que lembram um sonho.
Com esse filme, Adolf Hitler considerou Leni uma cineasta perfeita, tornou-a sua diretora favorita, e logo depois a chamou para trabalhar com ele no Reich.  Essa é a versão que Leni defendeu a vida toda em entrevistas - há quem diga que foi ela quem assistiu a um discurso de Hitler, ficou encantada e propôs ao Führer seu trabalho como cineasta. Independentemente de quem procurou quem, o que houve foi uma longa parceria entre ambos – no ano seguinte, 1933, ela filmou o ‘5º Congresso Nacional-Socialista Alemão’, em Nuremberg, lançando-o como um filme-propaganda, ‘A vitória da fé’, de 61 minutos; o filme prepararia o maior filme dela e um dos mais importantes do cinema europeu daquela época, em termos de fotografia e montagem, “O triunfo da vontade” (1935), em que ela registrou o ‘6º. Congresso Nacional-Socialista Alemão’, também em Nuremberg, o famoso congresso nazista que reuniu 35 mil pessoas. A parceria não pararia aí; ela dirigiu o documentário em curta-metragem ‘O dia da liberdade’ (também de 1935), sobre o Exército de Hitler, e anos depois outro épico monumental da linguagem moderna, as duas partes de ‘Olympia’ (1938), traduzido no Brasil como ‘Olimpíadas e a mocidade olímpica’, sobre os Jogos Olímpicos de Verão de 1936 em Berlim – o filme deu a ela prêmio especial no Festival de Veneza.
‘A luz azul’ é um filme pioneiro dessa estética e narrativa diferenciadas da diretora, que já demonstrava aqui amplo domínio técnico com seus enquadramentos virtuosos e movimentos de câmera fora do comum, o que seria notável em ‘O triunfo da vontade’ - Infelizmente, a diretora serviu ao Reich, fazendo filmes que ampliavam o discurso hitlerista para fora do nicho nazista. Leni até o fim da vida defendeu que nunca foi filiada ao Partido Nazista e, conforme contava em entrevistas, ela era ingênua na época, não desconfiava sobre os rumos que a Alemanha tomaria nas mãos de Hitler. Ela pagou um preço caro: nunca mais conseguiu financiar filmes e gravar outros, pois ficou tachada como ‘a cineasta do Reich’, sofrendo boicote, além de ter sido presa, acusada de usar prisioneiros de guerra nos seus filmes, o que nunca ficou provado.



Indicado ao Festival de Veneza, que tinha sido fundado dois anos antes, ‘A luz azul’ foi rodado nos Alpes da Itália e trata de temas discutíveis na época, como fanatismo religioso. Está em domínio público e pode ser assistido gratuitamente no Sesc Digital, pelo Internet Archive, uma organização sem fins lucrativos fundada em 1996 que mantém um repositório com mais de 10 petabytes de arquivos digitais. Essa cópia vem de uma restauração de 2005, com metragem de 79 minutos, seis a menos que a original, de 85 minutos. No Internet Archive – acesso em https://archive.org/, a parceria com o Sesc Digital traz 10 filmes numa mostra chamada ‘Pioneiras do cinema’, que reúne curtas e longas escritas e/ou dirigidos por mulheres entre 1906 e 1946. Além de ‘A luz azul’, há os longas ‘A luz do amor’ (1921), da norte-americana Frances Marion, e ‘O ébrio’ (1946), da brasileira Gilda de Abreu, e curtas-metragens de Alice Guy-Blaché, Mabel Normand, Maya Deren e outras. Acesso ao Sesc Digital em https://sesc.digital/home

A luz azul (Das blaue licht). Alemanha, 1932, 79 minutos. Drama. Dirigido por Leni Riefenstahl. Distribuição: Sesc Digital (em domínio público)

Nenhum comentário: