terça-feira, 1 de julho de 2008

Entrevista Especial

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Etty Fraser: “Nasci com o traseiro virado pra lua” (*)

Felipe Brida

No teatro e na TV, Etty Fraser sempre deixou a marca de um carisma absoluto ao abraçar os papéis de mãe e vovó. Nesses 50 anos de carreira dedicados à arte, a atriz esteve à frente do processo de transformação da televisão e da reformulação do teatro. Nascida no Rio de Janeiro em 9 de maio de 1931, Etty começou a praticar teatro em casa, aos oito anos de idade, com apoio da mãe. Formou-se em Línguas (Anglo-germânicas) pela USP e foi professora em colégios e universidades em São Paulo, como Mackenzie. Tornou-se atriz os 27 anos, tardiamente. Foi precursora do Teatro Oficina em São Paulo e atuou em diversas telenovelas na Excelsior, Tupi e Bandeirantes.
Em 1962 casou-se com o ator e colega de teatro Chico Martins. Viveram juntos até 2003, quando Martins faleceu aos 78 anos. Em 2004, sua biografia foi lançada em livro, “Etty Fraser: Virada pra Lua”, escrita por Vilmar Ledesma e publicada na série Perfil da Coleção Aplauso, da editora Imprensa Oficial.
Em entrevista especial ao Notícia da Manhã, a atriz Etty Fraser contou sobre os altos e baixos da carreira e fez uma crítica quanto à postura dos artistas. Confira.


NM – Etty, como foi tornar-se “mãe” no teatro aos oito anos pela primeira vez?

Etty – Engraçado isto. Eu faço papel de mãe desde os oito anos. Nesta época, minha mãe montava um palco improvisado no quintal de casa. Tinha vontade de fazer o papel de Chapeuzinho Vermelho, mas a roupa não entrava em mim. Queria fazer o lobo, mas não cabia na máscara. Então minha mãe disse que eu deveria fazer a mãe. E até hoje acumulo papel de mãe em teatro, TV e cinema. É mãe doida, mãe doente, mãe alegre, mãe de todo jeito.

NM – Ao completar, em maio passado, 77 anos de idade, também comemorou 50 anos dedicados ao teatro. Como nasceu a paixão por este trabalho?
Etty – Sempre admirei teatro. Eu havia estudado teatro na Inglaterra, mas nunca exerci a profissão. Em 1958, no colégio Ofélia Fonseca eu era professora de uma menina, Albertina Costa, hoje grande filósofa, e esta me convidou para assistir a uma peça. Após o espetáculo, fomos cumprimentar o elenco. Daí o diretor falou para mim: “Você fala muito sobre teatro em suas aulas, e portanto gostaria que participasse de uma peça, que irá estrear no próximo mês no festival estudantil”. Eu topei de cara. Só que o teste seria no dia seguinte, 8 de maio, dia do meu aniversário. Não queria ir, mas fui. Gostaram de mim e ganhei o papel em “A Incubadeira”. O diretor da peça, que me convidou naquele dia, era ninguém mais que José Celso Martinez Corrêa. Foi meu primeiro passo na carreira, e nunca mais consegui ficar distante do teatro. Como dizia minha mãe, nasci com o traseiro virado pra lua.

NM – Daquele teatro ainda amador para o Teatro Oficina, considerado o “formador dos grandes artistas da atualidade”, foi um pulo?

Etty – Em 1958 fundamos, com a intervenção dos alunos da Escola de Direito do Largo São Francisco, o Teatro Oficina, um dos mais importantes do país. Firmei minha carreira lá, onde estive por 10 anos. Era um teatro diferenciado, com estilo de arte cênica internacional. Foi nas instalações dele que, influenciado pela montagem de “O Rei da Vela”, em 1967, lançou-se o movimento tropicalista. Também foi no Teatro Oficina onde conheci o amor da minha vida, Chico Martins. No Oficina haviam artistas já famosos, como Célia Helena, Renato Borghi, Miriam Mehler, Beatriz Segall, Dina Sfat e Cláudio Marzo. Remontamos peças famosas como “Os Inimigos” e “Pequenos Burgueses”, ambas de Maximo Gorki, “Toda Donzela tem um Pai que é uma Fera” e “A Importância de ser Fiel”. Sem dúvida o Teatro Oficina integrou a cultura artística brasileira e virou modelo para muitos outros grupos.

NM – Acredita que o advento da televisão tenha sido um fator determinante para a fragilidade do teatro, tanto para os artistas quanto para o público?

Etty – A televisão fez dividir o público do teatro, sem dúvida. Era algo novo, e tudo aquilo que é novidade atrai a atenção. Naquela época, anos 60, éramos bobocas. Achávamos que a televisão era sinônimo de prostituição. Prostituição da arte, uma idéia besta, se pensarmos hoje. Muitos artistas tinham receio de entrar na TV e ficarem “queimados”. Mas isto durou pouco tempo, pois emissoras de TV surgiram, e as telenovelas tornaram-se sensação. Para se ter idéia de como a TV dominou naquela época, um dia fui convidada pelo autor de teatro Bráulio Pedroso, que escrevia Beto Rockfeller, para participar de um capítulo desta novela – o objetivo da novela era revolucionar a arte por meio da narrativa inovadora. Isto foi em 1968; interpretei a madame Waleska, uma cigana fajuta. O sucesso fez com que eu atuasse em mais 40 capítulos. Meses depois Geraldo Vietri me viu em “Beto” e me convidou para “Nino, o Italianinho” (1969/1970), na TV Tupi. E assim teve início a minha saga na TV.

NM – Com o fechamento da Tupi em 1980 muitos artistas tiveram de rearranjar a carreira.

Muitos foram para o Rio de Janeiro seguir carreira na Globo. Como ficou a sua situação?
Etty – Eu tinha intenção de ir para o Rio, mas não deu certo. Trabalhei com comerciais de TV para a Cica, até que me chamaram para dar aulas de culinária na televisão. Apresentei o famoso programa “À Moda da Casa”, na Record, entre 1980 e 1988. Muita gente achava que as receitas eram minhas. Elas eram feitas pela equipe da Cica, e eu apenas as transmitia.

NM – A senhora passou por um momento inusitado e ao mesmo tempo trágico em 1998 relacionado à sua morte. De onde surgiu esse factóide?

Etty – Foi algo constrangedor. Em 1998 aceitei trabalhar na Globo, só porque era Sílvio de Abreu. Fui interpretar a tia Sarita na novela Torre de Babel. De tanto ir e voltar de avião para o Rio gravar a novela, tive uma embolia pulmonar e fiquei internada na UTI por um mês e, depois, fiquei 10 meses de cama. Por eu ter sumido, acharam que eu tivesse morrido, e até algumas emissoras de televisão divulgaram, naqueles programas de retrospectiva, a minha morte. Pelo amor de Deus, ainda estou viva e forte!

NM – No cinema, apesar de poucos filmes no currículo, ganhou notoriedade em Durval Discos. Como foi interpretar a dona Carmita, a mãe superprotetora?

Etty – Tudo começou em 1995, quando a diretora Anna Muylaert me convocou para o curta “A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti”; eu fazia a diretora do colégio e dizia apenas uma frase. Daí a Anna me prometeu que se um dia fizesse um filme iria me colocar no papel principal. Passaram-se seis anos e veio o “Durval Discos”. Anna dirigiu o filme como se fosse uma peça de teatro. Entrosamo-nos muito bem, o Ary França e eu. Carmita (foto ao lado) era uma senhora amorosa, que, com o desenrolar da história, pirava de vez, tudo para proteger uma criança. Quando tentam tomar a menina dela, Carmita fica louca e chega ao ponto de matar. Fico emocionada toda vez que revejo o filme. O público adorou o papel, até hoje me chamam de Carmita, principalmente os jovens. É uma “beijocação” danada, todos têm muito carinho pelo filme. Até ganhei o prêmio de atriz no Cine-PE/Recife por “Durval Discos”.

NM – A partir de “Durval” não surgiram vagas para o cinema?

Etty – O resultado de “Durval” foi tão agradável que alguns colegas e eu pensamos que iria chover na minha horta. Mas não. Cinema é uma panelinha, centralizado no Rio. Estou velha, não tive sorte em cinema. Mas tive sorte em teatro e TV. Aliás, para ser ator é preciso ter um pouco de talento, e a questão maior: sorte. Estar no lugar certo e na hora certa. Nunca me arrependi de nada, e se pudesse recomeçar tudo de novo, seria exatamente com os mesmos pais, mesmo marido, mesmo filho, mesma juventude, mesmos colegas de trabalho e mesma profissão. Não mudaria nada. Não sou conservadora, apenas feliz.

NM – Sente-se na mesma situação que os artistas que estão na terceira idade, em relação à falta de papéis na TV e no teatro?

Etty – Bastante. Recentemente fiz “Família Muda-se”, peça em que interpreto a tia judia com mal de Alzheimer. Também fui convidada, pouco tempo atrás, para a releitura de uma peça hebraica, e minha personagem também sofria de Alzheimer. Agora só aparece isto. Personagens com Parkinson, Alzheimer, esclerose e surdo. Hoje na “quarta idade” tudo fica mais difícil. Mas se pintar algo, vou correndo.

NM – Simpatia ou apatia. Como os artistas se portam diante do público?

Etty – Sempre critiquei a postura dos artistas que viram a cara para os fãs, ainda mais na atualidade. Artista precisa dar atenção ao público. Você chega num ponto em que faz a cabeça do telespectador , entra na casa da pessoa sem pedir licença, muda a mentalidade do jovem e depois trata mal o público? Precisa ter feeling, conversar com eles. Eu sempre fui de dar atenção a eles. É necessário saber que o telespectador é quem eleva a audiência da novela ou a bilheteria do filme e, em razão disto, torna o ator famoso e a atriz, estrela.


Outros trabalhos da carreira de Etty Fraser

Seriados

“O Vigilante Rodoviário” (1961)
“Mundo da Lua” (1992)
“Um Só Coração” (2004)

Novela

“Ninguém Crê em Mim” (1966)
“Simplesmente Maria” (1970)
“O Machão” (1974)
“Meu Rico Português” (1975)
“Os Apóstolos de Judas” (1976)
“Salário Mínimo” (1978)
“Cavalo Amarelo” (1980)
“Dulcinéia Vai à Guerra” (1980)
“Cidadão Brasileiro” (2006)

Cinema

“São Paulo, Sociedade Anônima” (1965)
“Em Cada Coração um Punhal” (1970)
“O Supermanso” (1974)
“O Homem do Pau Brasil” (1982)
“Por um Fio” (2003)
“Cristina Quer Casar” (2003)

(*) Entrevista publicada no jornal Notícia da Manhã, periódico de Catanduva, na edição do dia 01/07/2008. Créditos para as duas primeiras fotos de Etty Fraser: Felipe Brida. Outras fotos: Divulgação.

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