Documentário sobre o histórico ‘Festival de Águas Claras’, ocorrido nos
anos 70 e 80, que ficou popularmente conhecido como o ‘Woodstock Brasileiro’.
Formidável documentário para os amantes do rock brasileiro e de MPB, vencedor
do prêmio do júri no Festival In-Edit e exibido no ‘Festival É Tudo Verdade’ de
2019. O filme resgata a
trajetória de um jovem estudante de engenharia de 22 anos, que, em 1975, teve a ideia maluca de criar um
megafestival de música no interior de São Paulo, nos moldes da Woodstock. O
local: a fazenda de sua família, chamada de Santa Virginia, na cidadezinha de
Iacanga, a 50km de Bauru e a 380km de São Paulo. Antonio Checchin Junior, o
Leivinha, foi esse rapaz, idealizador de um projeto ousado, em plena Ditadura
Militar, com inspiração no movimento Hippie, na liberdade do corpo e das drogas
(na época as drogas era a maconha), contra o conservadorismo e contestando os
atos autoritários do governo militar. A fazenda de Leivinha virou palco para o
lendário festival ao ar livre, chamado de ‘Águas Claras’, e por nove anos,
houve lá quatro edições do evento, reunindo um numeroso e diversificado
público, com apresentação de artistas de renome.
Ao longo do documentário, acompanhamos os bastidores da realização do
festival, da parte técnica trabalhando e operando som, a chegada dos músicos, a
mobilização da cidade e as intercorrências, como chuvas fortes. São entrevistas
da época, de arquivo, com os produtores, músicos e da população de Iacanga, bem
como depoimentos atuais, de Leivinha e de artistas que se apresentaram, como
Hermeto Paschoal e Paulinho Boca de Cantor. Num dos momentos do doc, moradores
contam que o festival chamou tanto público que Iacanga, na época com menos de
cinco mil habitantes, ficou desabastecida de remédios e alimentos!
A primeira edição do festival ocorreu por três dias, em janeiro de 1975
– chegou a ser autuado pela Polícia Federal, apontado como um evento subversivo
com hippies, drogas e devassidão, segundo eles, ‘atentando contra a moral e os
bons costumes’, como consta no boletim de ocorrência – a cópia do B.O. sai no
livreto que vem junto ao DVD do filme lançado pela Versátil Home Video. Juntou
cerca de 20 mil pessoas, muito acima do esperado.
A segunda edição – que é mais focada no filme, ocorreu seis anos depois,
entre os dias 4 e 6 de setembro de 1981. Esse foi televisionado, com mais
publicidade, subiram ao palco Raul Seixas, Sandra de Sá, Luiz Gonzaga, Hermeto
Paschoal, Gilberto Gil, Alceu Valença e outros. Conseguiram até trazer João
Gilberto, que evitava shows – os produtores contam que foi difícil levá-lo, e
Gilberto considerou este o melhor show da sua vida. A segunda edição contou com
75 mil pessoas na plateia.
A terceira edição, em 1983, trouxe cantores como Fagner, Sivuca,
Paulinho da Viola e Wanderléa, porém interrompido por uma chuva incessante,
tendo de ser cancelados shows de Luiz Melodia e Clementina de Jesus, sem contar
brigas de público e problemas técnicos.
A quarta e última edição veio durante o carnaval de 1984, com menor
público, poucos recursos e menos artistas presentes.
O documentário musical resgata esse momento único e pioneiro de nossa
cultura, um ‘hippismo à moda brasileira’, antes mesmo de existir o Rock in Rio.
Nostálgico e bem editado, nos leva a um passeio imersivo na arte musical do
Brasil em um período complexo, de transformações.
Saiu em DVD pela Versátil em parceria com a bigBonsai; vem com luva, em
disco duplo contendo o filme e cinco horas de vídeos extras, além de um pôster
com o cartaz original do festival, três cards e um livreto de 40 páginas. O
filme também está disponível na Netflix e no canal Curta!
O barato de Iacanga (Idem). Brasil, 2019, 93 minutos. Documentário.
Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Thiago Mattar. Distribuição: Versátil
Home Video
Almas gêmeas
A adolescente Juliet (Kate
Winslet) muda-se com os pais da Inglaterra para a costa da Nova Zelândia. Na
nova escola, conhece outra adolescente, Pauline (Melanie Lynskey), e ambas têm uma
afinidade fora do normal. Elas desenvolvem uma forte amizade; juntas criam um
mundo próprio, afastando-se da realidade. Quando a mãe de Pauline a flagra
beijando Juliet, o mundo desaba sobre as duas, que serão obrigadas a se
afastar.
Filme marcante dos anos
90, apontado por críticos do mundo todo como um dos mais importantes daquela
década. Lançou Kate Winslet no cinema, que logo viraria estrela de Hollywood
com ‘Titanic’ (1997), e teve como inspiração um fato verídico chocante que
mexeu com a opinião pública da Nova Zelândia. O ‘Caso Pauline Parker e Juliet Hulme’
envolveu uma amizade que ultrapassou os limites e virou uma obsessão. O caso é
datado de 1954, ocorreu na costa leste da ilha sul de Nova Zelandia, em Christchurch,
uma cidade de médio porte, de estilo inglês. Na época Pauline tinha 16 e
Juliet, 15 anos. Juliet é inglesa, vem com os pais para a cidade, tem
comportamento forte e transgressor, desafiando professores, amigos e a família.
Já Pauline é passiva, aceita tudo, vive bem com os pais. Quando a amizade das
duas se fortalece, tudo poderá acontecer. Elas acabam criando um mundo
paralelo, fogem de casa para viver aventuras pelos bosques, conversam com
cavaleiros de pedra – um deles é o ator Orson Welles, de quem são fãs, elas
inventam lugares com flores, uma delas adora as músicas de Mario Lanza e até o
‘veem’ cantando em sua frente. Acabam tendo um affair e são flagradas se
beijando, causando um alvoroço na família – a mãe de Pauline chega a levar a
menina à força a um psiquiatra, que detecta nela o ‘homossexualismo’ – palavra empregada
erroneamente na época, considerado uma doença. Por isso, os pais de ambas
resolvem afastar as duas – cuidado, spoiler - e como não havia mais a
possiblidade de se encontrarem, bolam um assassinato terrível para fugirem e
assim viverem juntas. O crime cruel ocorreu em 22 de junho de 1954, as duas
mataram a mãe de Pauline com mais de quarenta tijoladas na cabeça.
O filme, um drama que
vai mudando o tom para suspense no decorrer da história, tem enorme veracidade,
pois é uma adaptação dos diários das garotas. Rodado na Nova Zelândia, país
natal do diretor Peter Jackson, antes de se tornar conhecido pelas trilogias ‘O
senhor dos anéis’ (2001, 2002 e 2003) e ‘O hobbit’ (2012, 2013 e 2014) – nos
anos 80 e início dos 90 ele fez filmes de terror, terrir e scifi em seu país,
como ‘Trash – Náusea total’ (1987) e ‘Fome animal’ (1992).
O filme venceu o Leão de
Prata no Festival de Veneza e foi indicado ao Oscar de melhor roteiro – escrito
por Jackson e Fran Walsh, casada com ele desde os anos 80 – os dois trabalham
juntos, inclusive escreveram ‘O senhor dos anéis’.
Kate Winslet, nascida na
Inglaterra, tinha na época 18 anos, foi seu primeiro longa, depois de fazer
séries; também foi a estreia de Melanie Lynskey, atriz neozelandesa, na época
com 16 anos, e que dá um show de interpretação – as duas são ótimas.
Originalmente tem 99
minutos de duração, mas foi lançado recentemente em DVD pela Classicline na
versão intermediária, de 102 minutos – há uma estendida do diretor, de 108 minutos,
que no Brasil não encontramos. Muito tempo atrás saiu em DVD numa edição de
banca, nos primórdios do DVD, no início de 2000.
Almas gêmeas (Heavenly creatures). Nova Zelândia/Alemanha,
1994, 102 minutos. Drama/Suspense. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Peter
Jackson. Distribuição: Classicline
Astrágalo
Presa por roubo, Albertine
(Leïla Bekhti) pula os muros da prisão de Douellens, na França, para fugir. Ela
cai, quebra um osso do pé chamado ‘astrágalo’, e se rasteja até a estrada, onde
é socorrida por um desconhecido, o motorista Julien (Reda Kateb). Ele a leva
para a casa de um amigo em Paris, e juntos iniciam um romance. Até que Julien é
preso, e Albertine passa a ser procurada pela polícia.
‘Astrágalo’ é a segunda
adaptação do romance autobiográfico ‘O astrágalo’, de Albertine Sarrazin (1937-1967),
autora nascida na Argélia antes da independência, quando o país norte-africano era
de domínio da França. Albertine teve uma vida trágica – com dois anos foi
largada na rua pela mãe, adotada em seguida por um médico do Exército; foi
estuprada aos 10 anos por um familiar, depois entrou para a prostituição. Presa
aos 16 anos por roubo a mão armada a uma loja de roupas, recebeu sentença de
sete anos; na cadeia escreveu poesia e romances. No reformatório de Doullens, fugiu,
machucou-se e foi socorrida por um motorista de caminhão, Julien, mantendo,
ambos, uma vida de crimes. Os dois foram presos diversas vezes, chegaram a se
casar na cadeia, até que tiveram de ser afastados um do outro. Albertine trabalhou
um rápido período como jornalista, teve relacionamento amoroso com uma amiga e
publicou seu primeiro romance, ‘Astrágalo’, em 1964, que virou bestseller, obra
que retrata sua vida. O livro originou uma primeira versão, de sucesso, em 1968,
dirigido por Guy Casaril, com Horst Buchholz e Marlène Jobert (também argelina
e mãe da atriz Eva Green) nos papeis principais. Albertine morreu aos 29 anos
após complicações de uma cirurgia às pressas.
Parte dessa trajetória da
controversa Albertine é relatada no filme – o longa-metragem já abre com Albertine,
à noite, escapando do reformatório feminino de Doullens, onde cai, fere o pé –
ela quebra o osso chamado ‘astrágalo’, e se rasteja até a estrada onde será
socorrida pelo futuro amor de sua vida, um motorista que também é criminoso. Sem
focar nos crimes que cometeram ao longo da vida, é mais um drama romântico de
um casal marcado pelo passado, que tem de viver fugindo de lá pra cá. Com muitos
closes e enquadramentos íntimos, tem uma belíssima fotografia PB, uma clara homenagem
a Nouvelle Vague – o clima de tragédia, com aspectos de cinema noir, é uma
constante no filme.
O elenco é bom, com Leïla
Bekhti interpretando a protagonista Albertine - atriz de ‘O profeta’ (2009),
onde conheceria o futuro marido, o ator Tahar Rahim, com quem é casada, e Reda
Kateb como Julien – o ator também fez ‘O profeta’ e aparece hoje em muitos
filmes franceses e americanos.
O roteiro adaptado do
livro é de Brigitte Sy, uma atriz veterana que também dirige o filme – Brigitte
dirigiu apenas dois longas com esse e atuou em mais de 35 longas, como ‘A
guerra está declarada’ (2011) e ‘Vida selvagem’ (2014). Disponível em DVD pela
Imovision, também pode ser assistido na Apple TV e na plataforma em streaming Reserva
Imovision, uma parceria do cinema Reserva Cultural com a Imovision, que reúne
todo o catálogo da distribuidora.
Astrágalo (L'astragale). França, 2015, 96 minutos.
Drama/Romance. Preto-e-branco. Dirigido por Brigitte Sy. Distribuição: Imovision
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