segunda-feira, 17 de junho de 2024

Especial de Cinema


‘Fuga do século 23’ - uma sociedade de extremos

Como será a vida no século XXIII? Haverá paz mundial ou guerras sem fim? Terá moradia suficiente para a população? E os alimentos, estarão disponíveis quando todos precisarem? Em ‘Fuga do século 23’ (1976), as respostas são apontadas, segundo a visão do diretor Michael Anderson a partir do livro futurista que inspirou a obra, escrito pelos norte-americanos William F. Nolan e George Clayton Johnson - publicado em 1967 e que virou bestseller.
Conforme o filme, no século XXIII a sociedade vive em equilíbrio. A população é feliz, não há guerras ou doenças, e tudo é provido pelos computadores inteligentes, desde as refeições até o lazer. Essa sociedade hedonista, que hipervaloriza o prazer, elimina as dores, as preocupações, os medos. Nada falta para as pessoas. As cidades são protegidas por redomas de vidro, os estádios com grandes arquibancadas preenchem a paisagem urbana, divididos por prédios altos envidraçados e espelhos d’agua. Túneis cortam a cidade de fora a fora, por onde transitam em alta velocidade veículos modernos.
Na abertura do filme, os letreiros trazem a informação de que houve uma terrível guerra, e os sobreviventes residem nessa cidade fechada em um domo, “afastada e esquecida do mundo exterior”. Porém, nesse mundo ecologicamente equilibrado, ninguém envelhece, pois a vida deve terminar aos 30 anos. Quem completa tal idade, participa de um ritual selvagem chamado ‘Renovação’, em que o corpo é destruído numa máquina denominada ‘Carrossel’, e, de acordo com as leis da sociedade, o indivíduo retorna no futuro – uma espécie de reencarnação.
Um dos moradores ilustres desse lugar é Logan 5 (papel de Michael York, de ‘Cabaret’) – o 5 depois do nome dos personagens é a geração de cada um, ou seja, Logan é o 5º representante de sua geração. Ele é um ‘Sandman’, um caçador de gente, que captura e mata aquele ou aquela que ousar escapar daquela sociedade controlada. Ele forma um par ideal com Francis 7 (Richard Jordan, de ‘A caçada ao outubro vermelho’); ambos são Sandmen, usam uniformes pretos com marcas cinzas, portam uma arma letal, vigiando a população. Até que um dia, depois de capturar um fugitivo após um ritual de Renovação, põe-se a questionar sua função e se realmente as pessoas eram renovadas no Carrossel, já que sua vida está prestes a acabar – as pessoas usam um ‘marcador de vida’ nas mãos, uma espécie de cristal que muda de cor conforme o avanço das idades, e a cor vermelha significa o término. Ao filosofar com uma amiga/amante, Jessica 6 (Jenny Agutter, de ‘A longa caminhada’), ele é provocado com discussões existenciais. Concluem que nunca viram ninguém voltar do Carrossel, então as pessoas morriam e acabou. Logan descobre uma brecha no sistema de vigilância, nem todos os habitantes são computados, e há possibilidades reais de fuga. Ao se passar por um foragido, recebe a missão de escapar de lá, rumo ao ‘Santuário’, local mítico onde, aparentemente, as pessoas vivem mais livres, há imunidade e tolerância e ninguém morre. Logan não imaginava existir um lugar assim – para ele, o mundo era apenas sob aquele domo rosa. Sua missão é destruir o Santuário. Ele aceita o desafio, junta-se a Jessica 6 e parte para a nova jornada de sua vida.
Essa superprodução norte-americana, originalmente da MGM, contou com orçamento caro para os padrões de filmes da época – U$ 9 milhões, marcando o cinema scifi, com sua história intrigante e fotografia com cores fortíssimas, que remetiam ao Psicodelismo – as cores eram de uma Metrocolor, processo inovador feito pelos estúdios da MGM. Indicado ao Oscar de melhor fotografia e direção de arte, recebeu da Academia um prêmio técnico especial, de efeitos especiais, em 1977.




O arranjo da fotografia ultracolorida, assinada por Ernest Laszlo, de ‘Aeroporto’, com a direção de arte futurista, misturando formas inusitadas de vidro, metal e gelo, da dupla Dale Hennesy e Robert De Vestel, de ‘O jovem Frankenstein’, realçam o poder visual dessa obra distópica fundamental para o cinema setentista. Um filme longe do entretenimento por si só, e sim repleto de críticas sociais, que ajudariam a compreender o comportamento social daquele período em que o filme foi feito, 1976, e os anos posteriores, década de 80, 90 e a chegada ao século XXI.
A população que vive sob a redoma veste-se de maneira homogênea, com túnicas vermelhas, rosas e verdes, enquanto passeiam por aí, felizes, por ambientes parecidos com grandes shopping centers. Sim, seria uma crítica ao comportamento de grupo e imposição do padrão de consumo e da moda.
Outra crítica perceptível é a da ‘sociedade do espetáculo’, ideia pensada pelo francês Guy Debord nos anos 60, quando os indivíduos se reúnem para celebrar o evento da ‘Renovação’, no Carrossel, em que as pessoas são explodidas ao vivo. É um ‘panis et circenses’ high tech - as pessoas se distribuem pela arquibancada circular, e dentro de um enorme cristal vermelho em formato de uma rosa, os que completaram 30 anos ficam lado a lado, até que de cima vem uma luz, faz o carrossel girar, e eles são levitados para o topo; a plateia histérica comemora, aplaudindo e gritando. Lá do alto, para se renovar, as pessoas explodem – quando acaba o ritual, todos voltam para casa, até que um novo ritual seja organizado. É tanto uma referência às arenas do Império Romano quanto da atual espetacularização midiática de acontecimentos.
O filme traz uma visão idílica e distópica, nos moldes malthusianos, de um futuro aparentemente tranquilo, onde não há tristeza nem dor, tampouco o envelhecimento e o medo da morte. É um mundo de prazer absoluto, um século XXIII tecnológico e de pura comodidade. Mas por trás disso há um processo aterrador – as pessoas são forçadas a morrer jovens, com 30 anos – no livro de William F. Nolan e George Clayton Johnson, a idade é 21 anos. Morrer significa manter não só o equilíbrio populacional como o da distribuição eficaz de alimentos. São ideias recorrentes na literatura e no cinema sobre futuros distópicos, segundo Bertucci & Vieira (2022), já que as distopias são o oposto radical da utopia. O termo ‘distopia’, segundo os autores, surgiu, pela primeira vez, num discurso do filósofo e economista inglês John Stuart Mill no parlamento britânico em 1868, e trata de um “lugar de extrema opressão, seja pelo controle excessivo ou pelo total descontrole social, onde recorrentemente reinam o autoritarismo e a violência física ou simbólica” (p.77).
Também Gomes, Cardoso & Pedro (2020) apontam que as distopias expressam visões negativas do mundo social, e elas “têm como um de seus temas centrais a dinâmica do poder e do autoritarismo. Compartilham também uma forte desconfiança diante do emprego instrumental da ciência e da tecnologia, e um fascínio com a paranoia, o aprisionamento e a alienação social do indivíduo” (p.6-7).
No filme ‘Fuga do século 23’ - o título pode aparecer como ‘Fuga no século 23’, a sociedade é manipulada, vive sob vigilância, não tem liberdades plenas e há uma evidente alienação. “As distopias problematizam os danos prováveis caso determinadas tendências do presente vençam. É por isso que elas enfatizam os processos de indiferenciação subjetiva, massificação cultural, vigilância total dos indivíduos, controle da subjetividade a partir de dispositivos de saber [...] Elas contêm um pessimismo ativo [...] são a denúncia dos efeitos de poder ligados às formas discursivas”, de acordo com Hilário (2013).
Questões como controle populacional, controle de natalidade, totalitarismo, opressão, narcose, ostentação ao belo, ao perfeito e ao saudável, e sociedade vigiada, que circulam em ‘Fuga do século 23’, são teores presentes - e que serviram de críticas sociais contundentes - em obras icônicas do século XX sobre distopias. Está em George Orwell (em ‘1984’), Aldous Huxley (em ‘Admirável mundo novo’), Philip K. Dick (em ‘Androides sonham com ovelhas elétricas’, que depois se chamaria ‘Blade runner’), Ray Bradbury (em ‘Fahrenheit 451’), Margaret Atwood (em ‘O conto da aia’), Anthony Burgess (em ‘Laranja mecânica’), Arthur C. Clarke (em ‘O fim da infância’), Evgéni Zamiátin (em ‘Nós’), Willian Gibson (em ‘Neuromancer) e Stanislaw Lem (em ‘O incrível congresso de Futurologia’) – e quase todos esses viraram filmes ou séries.



‘Fuga do século 23’ não era apenas ficção. Vislumbravam-se muitas coisas na sociedade daquela época, e que estariam presentes anos depois, como a tecnologia para todos os processos. Numa das cenas há o reconhecimento facial de um morto com um equipamento eletrônico portátil, e numa outra, uma espécie de biometria com a palma da mão – hoje, ambas as tecnologias são amplamente utilizadas. Em outra cena, uma espécie de TV de LED gigante toma conta da sala de Logan, controlada por controle remoto, que torna tudo interativo – lá ele consegue trazer uma mulher da TV para sua casa. As câmeras de vigilância invadem privacidade e levam a informação até os painéis numa central, como se fosse um Big Brother. Os procedimentos médicos e estéticos indolores e por robôs e máquinas também são mostrados numa cena de muita ação. Tudo isso, de uma certa maneira, já existe nos dias de hoje.
A sociedade de ‘Fuga do século 23’ é limitada, castradora, vigilante e punitiva, onde não se questiona nada, nem métodos nem as informações que são passadas. É uma sociedade alienada – a cena em que Logan descobre a verdade por trás da Renovação, de que aquilo não passava de uma fraude, mostra o sistema de fake news que permeava aquele lugar, para controlar, colocar medo e adestrar os indivíduos.

A chegada ao Santuário – cuidado, spoiler alert!

O bloco da metade ao final do filme propicia um deslumbramento especial a quem assiste. Depois da fuga de Logan e Jessica, após cruzarem uma passagem de gelo, enfrentarem um robô mal-intencionado que congela os fugitivos, e se depararem com a natureza, do lado de fora da redoma, em busca do Santuário, percebem que lá existe uma civilização antiga e perdida, uma enorme floresta com corredeiras e cachoeiras, e não há sinal de vida. Após a dupla desbravar a mata e vasculhar um panteão coberto por folhagens, fica perplexa com uma estátua central, não reconhecendo quem é a pessoa. A poucos quilômetros, avistam um enorme obelisco e um prédio alto com uma cúpula quebrada. Ali só um morador vive, um senhor, apelidado de ‘Old man’ (participação de Peter Ustinov, de ‘Spartacus’), de memória atrapalhada e cercado por gatos. O local nada mais é do que a capital norte-americana, Washington D.C. O Santuário é o Capitólio, o centro legislativo dos EUA, e o obelisco, o Monumento a Washington, com seus 170 metros de altura, todo abandonado, pois há dois séculos a população sucumbiu. A estátua anteriormente vista era a de Abraham Lincoln, e o lugar visitado por Logan e Jessica, o Lincoln Memorial. Vendo aquele senhor de idade e as ruínas por onde passaram, Logan entende o sentido do que é envelhecer, aquilo que era tirado deles quando estavam na redoma de vidro. Nessa sequência, Old man, cercado pelos gatos, recita poemas de T.S. Elliot, da coleção ‘Os gatos’ – ‘Old possum's book of practical cats’ – um dos animais dele se chama Jellicle, e Old Man seria uma personificação de Old Deuteronomy, personagem de muita idade e quase transcendental, tanto dos textos de T.S. Elliot quanto do musical inspirado pelo autor, ‘Cats’.
O santuário nada mais seria que o último vestígio da civilização humana, com apenas um morador que vive até chegar o seu fim natural – não só aqui, mas em todo o filme reside uma crítica ao controle de natalidade, à liberdade de escolha e à pena de morte. Vale reforçar, com outras palavras, que na sociedade da redoma de vidro a morte prematura e forçada faz parte das leis, ou seja, eram autorizados assassinatos em massa.



Notas sobre a produção e curiosidades

- William F. Nolan, um dos autores do livro ‘Logan’s run’, também escreveu contos e roteiros para cinema de terror, como a adaptação do livro para o cinema de ‘A mansão macabra’ (1976) e segmentos dos telefilmes ‘Trilogia do terror’ (1975) e ‘Trilogia do terror II’ (1996). O outro autor do romance ‘Logan’s run’, George Clayton Johnson, ao lado de Jack Golden Russell, criou a história de ‘Onze homens e um segredo’, que virou filme em 1960 e depois inspirou o remake e as continuações na década de 2000 – ele ainda escreveu episódios das séries ‘Além da imaginação’, ‘Jornada nas estrelas’ e ‘Kung fu’, e um dos segmentos do filme ‘No limite da realidade’ (1983).

- O roteiro do filme ‘Fuga do século 23’ é de David Zelag Goodman, que colaborou como roteirista em ‘Sob o domínio do medo’ (1971) e ‘Os olhos de Laura Mars’ (1978), ao lado de outros roteiristas.

- A trilha sonora é de Jerry Goldsmith, de ‘A profecia’ (1976), ‘Meninos do Brasil’ (1978) e outros 200 filmes.

- A direção é do cineasta londrino Michael Anderson, que havia feito a primeira versão do filme futurista ‘1984’, em 1956, baseado no clássico de George Orwell; depois dirigiu fitas importantes como ‘A volta ao mundo em 80 dias’ (1956), ganhadora do Oscar de melhor filme, e ‘As sandálias do pescador’ (1968).

- O filme originou nos dois anos seguintes a série norte-americana ‘Fuga das estrelas’ (1977–1978), que contou com apenas uma temporada com 14 episódios, protagonizada por Gregory Harrison.



Referências

BERTUCCI, Jonas O.; VIEIRA, Nathan. A procura por distopias no século XXI: uma análise do ranking de obras mais populares do portal Amazon Brasil. Abusões, n. 17, ano 08. 2022. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/abusoes/article/view/60145. Acesso em: jan. 2024

GOMES, Anderson; CARDOSO, André; Sasse, PEDRO. A distopia e o gótico. Abusões, n. 12 v. 12, ano 06. 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/abusoes/article/view/51656/34135. Acesso em: jan. 2024

HILÁRIO, Leomir C. Teoria crítica e literatura – a distopia como ferramenta de análise radical da modernidade. Anu. Lit., Florianópolis, v.18, n. 2, p. 201-215, 2013. Disponível em http://dx.doi.org/10.5007/2175-7917.2013v18n2p201. Acesso em: jan. 2024

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