sexta-feira, 23 de junho de 2023

Resenha Especial


Resenha escrita especialmente para o livro "Cinema Policial - Filmes essenciais do gênero", lançado pela Versátil Home Video em junho de 2023. Livro disponível para venda no site da Versátil, pelo link https://www.versatilhv.com.br/.../livro-cinema.../5457699


Um assalto (quase) perfeito: uma análise de
O homem que burlou a máfia

Por Felipe Brida

O plano de Charley Varrick (Walter Matthau) e seus comparsas parecia estar no rumo certo. Assaltar o único banco de Três Cruces, uma cidadezinha pacata, no meio do nada, no estado do Novo México. Para não ser identificado, o grupo utiliza disfarces: Varrick com bigode postiço, óculos, uma pinta na bochecha e peruca, enquanto os colegas escondem o rosto debaixo de máscaras. Há um entrave com clientes do banco e com funcionários, terminando em um tiroteio com gente ferida. A polícia é avisada, no entanto o bando consegue capturar a dinheirama e fugir de carro em alta velocidade. Eles se assustam com a quantia: U$ 765 mil em notas verdinhas, perfeitas. Varrick, expert em assalto, sente algo estranho, e a pergunta não cala: por que tanto dinheiro assim num banco tão pequeno? O que eles não desconfiavam era de que a grana era “marcada”, e os donos nada mais nada menos que mafiosos. Em questão de minutos, eles se transformam no alvo da vez - e alvo duplo ainda por cima: são perseguidos pela polícia e pelos engravatados da máfia!
Varrick, apelidado de “O último dos Independentes” (que seria o nome original do filme, The last of Independents, depois alterado para o singular Charley Varrick), representa a audácia dos “criminosos perfeitos”, que farejam o alvo e esboçam com facilidade planos mirabolantes para obter o que almejam. Ele é um mestre do disfarce, lidera com mão firme um pequeno grupo de bandidos, atira sem pestanejar caso haja interferências na execução do crime e sabe muito bem se esconder. Ele não segue as leis. Faz sua própria lei, um típico personagem outlaw do subúrbio, que mata policiais e inocentes para salvar sua pele. Varrick, o ardiloso protagonista desse filmaço neo-noir de Don Siegel, segue os traços do antiherói, dentro de uma trama que reúne gente pior que ele, como mafiosos que lavam dinheiro, matadores de aluguel, banqueiros inescrupulosos e agentes da polícia corruptos. Varrick é um homem de meia-idade e solitário, que não tem mais nada a perder. Abandonou faz tempo o conformismo. Por ser o “último dos Independentes”, é páreo nesse jogo de gato e rato envolvendo dinheiro alto.



A eletrizante obra de Don Siegel, lançada em 1973 e que premiou Walter Matthau com o Bafta de melhor ator, não faz concessões. É uma fita policial dura, com cenas violentas de confrontos, pouco humor e por ele desfilam indivíduos truculentos, mesquinhos e perigosos, um retrato de quem povoava a sociedade da época (essas figuras permanecem por aí, hoje!). Do astuto assaltante Varrick ao presidente do banco envolvido diretamente com a máfia Maynard Boyle (John Vernon) passando pelo matador contratado para acabar com a gangue de Varrick, Molly (Joe Don Baker), todos tem na alma graus de vilania e não abrem mão de seus ideais. São sujeitos do submundo do crime, dispostos a vencer a qualquer preço. Por isso nunca se rendem.
A direção potente de Don Siegel não deixa passar uma vírgula, elevando essa obra cinematográfica a um patamar único do cinema policial setentista. Os atores estão bem guiados, entregam performances espetaculares, com especial atenção para Matthau, Vernon, Baker (num papel assustador) e de dois outros em participações menores, Andrew Robinson (integrante da trupe de bandidos de Varrick) e uma das poucas mulheres em cena, Felicia Farr (affair de Varrick). Seguem a cartilha explosiva de Siegel perseguições em alta voltagem, com carros trombando, tiros pra lá e pra cá, e um desfecho grandioso no ferro-velho, com o protagonista num avião de pequeno porte numa caçada infernal.
A parceria de Siegel com a dupla de roteiristas Howard Rodman e Dean Riesner brotou anos antes - com Rodman, Siegel fez “Os impiedosos” (1968), e no mesmo ano, 1968, juntou Rodman e Riesner em “Meu nome é Coogan” - o filme marcaria um extenso trabalho de Siegel com Clint Eastwood, que ascendia no cinema americano. A história de “O homem que burlou a máfia” foi adaptada do romance “The looters”, de John Reese, publicado em 1968, recebendo contornos especiais do diretor.



Do noir ao policial moderno: uma breve história de Don Siegel

Nascido em Chicago, Illinois, em 1912, Don Siegel marcou o cinema americano com seus filmes policiais. Por quase quarenta anos (o diretor realizou longas de 1946 a 1982, e faleceu em 1991, aos 78 anos), atravessou contextos diversos da cultura cinematográfica dos Estados Unidos: fez poucos, mas bons filmes
noir, experimentou comédia romântica e aventuras épicas, inovou o faroeste e deu uma repaginada no policial dos anos de 1960 e 1970, sendo inspiração de diretores como Sam Peckinpah e Clint Eastwood. O diretor foi casado três vezes, em uma delas com a atriz Doe Avedon e depois com outra atriz famosa, Viveca Lindfors. Teve cinco filhos.
Morou na Inglaterra, onde estudou na Universidade de Cambridge, e, de volta aos Estados Unidos, aos 20 anos, deu os primeiros passos no cinema, no início da década de 1930, com a ajuda do tio, o montador/editor Jack Sharper, que também produzia filmes da Warner Bros. Primeiramente foi assistente de direção e montador de filmes - editou, por exemplo, “O intrépido general Custer” (1941) e “A estranha passageira” (1942). Três anos depois, dirigiu dois curtas-metragens ganhadores do Oscar de melhor curta documentário – “Hitler lives” (1945) e “Star in the night” (1945).


Estreou como diretor de longa-metragem com o noir “Justiça tardia” (1946, com Sydney Greenstreet e Peter orre), depois faria mais dois no mesmo subgênero, “Cais da maldição” (1949, com Robert Mitchum e Jane Greer) e “Medo que condena” (1953, com Teresa Wright). Nessa primeira fase, passou por faroeste, como “Onde impera a traição” (1952, com Audie Murphy) e comédia romântica, no caso “Adorável tentação” (1952, com Viveca Lindfors - atriz com quem estava casado). A notoriedade do diretor explodiu com um dos filmes mais icônicos de terror dos anos 1950, que misturava scifi, o B-movie “Vampiros de almas” (1956, com Kevin McCarthy), que ganharia remake e continuações no futuro. Ainda no memo período, introduziu o policial no cinema B, em fitas a perder de vista – “Rua do crime” (1956, com John Cassavetes e Sal Mineo), “Assassino público número 1” (1957, com Mickey Rooney e Carolyn Jones), “O sádico selvagem” (1958, com Eli Wallach), “Contrabando de armas” (1958, com Audie Murphy) e “Covil da morte” (1959, com Cornel Wilde).
Dirigiu Elvis Presley e Barbara Eden no faroeste romântico “Estrela de fogo” (1960) e Steve McQueen no drama de guerra “O inferno é para os heróis” (1962). A guinada da carreira de Siegel foi reinventar o cinema policial com o frescor de ideias que a Nova Hollywood propunha a partir dos anos de 1960. “Os assassinos” (1963, com Lee Marvin e Angie Dickinson) e “Os impiedosos” (1968, com Richard Widmark e Henry Fonda”) vieram nessa onda de novos filmes de investigação e assassinato, impactantes e controversos. Dirigiu Clint Eastwood no policial “Meu nome é Coogan” (1968), firmando parceria com o ator que se projetava nos Estados Unidos após a “Trilogia do Dólar”, os westerns italianos de Sergio Leone que ganharam o mundo. Com Eastwood fez trabalhos memoráveis, como o faroeste com muito humor “Os abutres têm fome (1970), ao lado de Shirley MacLaine, o drama de época com pitadas de suspense “O estranho que nós amamos” (1971) e o fumegante filme de ação “Perseguidor implacável” (1971), em que Clint formalizaria a franquia de Dirty Harry (com quatro filmes em sequência, dirigidos por outras pessoas). Quase no fim da carreira, Siegel traria de volta Estwood num dos filmes mais emblemáticos e lembrados do ator, exibido milhares de vezes na TV aberta, “Alcatraz: Fuga impossível” (1979), uma fita de ação baseada em fatos verídicos.
Grande parte dos filmes de ação de Don Siegel inserem-se no chamado neo-noir, ou noir moderno, com tramas de assalto e crime lotadas de personagens ardilosos e enganadores, reservando um destino trágico a eles, sem contar plot twist criativos e violência gráfica e estilizada (para a época). “O homem que burlou a máfia” (1973) encontra-se nessa fase final do diretor, e é apontado por críticos e pelo público como um dos melhores feitos de Siegel. O diretor faria apenas seis filmes depois: “O moinho negro” (1974, policial com Michael Caine), “O último pistoleiro” (1976, faroeste que seria o último trabalho de John Wayne), “O telefone” (1977, thriller com Charles Bronson, e confesso ser um de meus filmes de policial com suspense preferidos) e duas fitinhas esquecidas, “Ladrão por excelência” (1980, policial com comédia com Burt Reynolds e Lesley-Anne Down) e “Jogando com a vida” (1982, uma amalucada comédia com crime com Bette Midler e Rip Torn).
Siegel desenvolveu ainda trabalhos para a TV: nos anos de 1960 dirigiu episódios para várias séries, como “Além da imaginação” e “Convoy”, e fez telefilmes como o suspense/faroeste “A caçada” (1967, com Henry Fonda e Anne Baxter). Foi ainda roteirista (de séries e curtas do início da carreira), produtor (onde assinou alguns filmes como Donald Siegel, dentre eles “Os assassinos”, “Meu nome é Coogan” e “O estranho que nós amamos”) e até, vejam só, aparecia como figurante em seus filmes (em “O homem que burlou a máfia”, por exemplo, faz um jogador de tênis de mesa, numa participação de segundos).




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