Animais noturnos
Susan
(Amy Adams) é uma artista contemporânea insatisfeita com o trabalho e com seu
casamento. Um dia recebe em casa o manuscrito do novo romance do ex-marido que
há tempos não vê, Edward (Jake Gyllenhaal), dedicado a ela. De conteúdo
violento, o livro causa angústia imediata em Susan – a cada página, relembra,
com peso na consciência, as poucas alegrias e muitas tragédias vividas ao lado
do ex. Até o término da obra, Susan será envolvida num turbilhão de sentimentos
devastadores, fazendo-a encarar fantasmas do passado.
Exibido
em sessão especial lotada de gente na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São
Paulo, em outubro passado, onde assisti pela primeira vez e gostei, o novo filme
do diretor e roteirista Tom Ford é um exímio exercício de roteiro, que constrói
um complexo quebra-cabeça em três frentes: o suspense psicológico (tenso,
perturbador e angustiante), o drama (austero e bem triste) e o policial
investigativo (violento sem ser gratuito). Esses gêneros coexistem dentro de um
filme metalinguístico e soberbamente simbólico, feito para um público adulto exigente,
que curte cinema inteligente.
A
história é contada pelo ponto de vista da mulher, no caso a personagem
principal, uma elegante artista infeliz no trabalho e no casamento. Depois de
receber o manuscrito do ex, ao ler o material, projeta para nós as cenas imaginadas
naquelas páginas, que compõem um romance brutal sobre uma família (marido,
esposa e filha adolescente) que se envolve num acidente de carro no meio do
deserto. As duas mulheres da ficção tornam-se vítimas de sequestro por um trio
de bandidos – como líder, o jovem Aaron Taylor-Johnson, indicado ao Globo de
Ouro de melhor ator coadjuvante, enquanto o marido e pai de família é abandonado
na beira da estrada. Em meio a um calor infernal, ele procura ajuda, auxiliado
por um policial, Andes, no estilo de xerife texano, ótimo trabalho de Michael
Shannon, indicado ao Oscar de coadjuvante esse ano. No desenrolar da história, os
dois saem numa jornada cruel em busca de respostas para o caso. Isto tudo
ocorre no livro, lido por Susan, com cenas jogadas para o telespectador a
partir do que ela cria em mente. Em paralelo, no tempo presente, fora da ficção
literária, Susan perde o sono, sacrificada com o conteúdo que tem em mãos, aquela
obra domina seu íntimo, fica atônita com as semelhanças do manuscrito com coisas
da vida real e questiona o motivo de ser mencionada pelo ex na dedicatória – para
causar essa aproximação de ficção e realidade, Jake Gyllenhaal interpreta dois
papéis: Tony, no livro, e Edward, o ex-marido, num formato original de
metalinguagem cênica. Bom trabalho de um mestre chamado Tom Ford.
Além
da literatura, o filme dialoga com o atual panorama da arte e da moda
norte-americana, realçado no estonteante figurino minimalista de Arianne
Phillips (duas vezes indicadas ao Oscar) e na fotografia explosiva do premiado Seamus
McGarvey, com altos contrastes de cores frias e quentes. Impressiona desde a bizarra
abertura, a dança das senhoras obesas seminuas, vestidas apenas com quepe e
acessórios em formato de bandeira dos Estados Unidos, numa clara alegoria à
decadência e ao feísmo na cultura contemporânea. Há outros elementos de impacto
em “Animais noturnos”, como a simetria fotográfica em frames, sobreposições de
imagens fortes, que lembram pinturas estilosas, a edição de flashbacks e de
interrupções brutas quando a personagem abre e fecha o livro.
O
filme ainda trata, por ora, de relacionamentos em fase terminal e da crise
econômica mundial, ou seja, caminha muito além do complexo suspense/drama/policial.
Recebeu
indicação ao Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2016 (ganhou o Leão de
Prata), oito indicações ao Bafta, três ao Globo de Ouro (melhor diretor, ator
coadjuvante e roteiro) e uma ao Oscar (Shannon), além de outros 12 prêmios
internacionais.
Também
vemos no elenco de apoio Michael Sheen, Laura Linney e Jena Malone, os três com
papéis excêntricos, saídos de um filme de Wes Anderson! Mas aqui quem dá as
cartas é Tom Ford, em seu segundo trabalho como diretor, sete anos depois do
belíssimo drama “Direito de amar” – ele escreveu o roteiro baseado no romance “Tony
& Susan”, de 1993, do falecido autor e crítico literário norte-americano Austin
Wright.
Filme
importante, imperdível e que requer uma revisão para melhor entendimento. Em
DVD pela Universal – no disco há um único extra, um making of de 11 minutos,
com boas explicações acerca da produção.
Animais noturnos (Nocturnal animals). EUA, 2016, 116
min. Suspense/Drama. Dirigido por Tom Ford. Distribuição: Universal Pictures
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