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Criador e criatura: Mojica e o funesto tormento de Zé do Caixão (*)
Felipe Brida
Direto das profundezas do lugar mais obscuro ideado pelo ser humano surge uma figura controversa e sádica do cinema brasileiro. Quem nunca ouviu falar de Zé do Caixão, o coveiro paranóico criado e interpretado pelo ator José Mojica Marins? O personagem, ícone do cinema de terror dentro e fora do Brasil, está de volta aos cinemas para atormentar o público, em especial os fãs do gênero. O mais novo longa-metragem de Mojica, “Encarnação do demônio”, cuja estréia nacional acontece hoje, encerra a trilogia rodada por ele nos anos 60 – “À meia-noite levarei sua alma” e “Esta noite encarnarei no teu cadáver”.
Em entrevista especial ao Notícia da Manhã, o ator, diretor, roteirista e produtor José Mojica Marins, 71 anos, conta sobre a produção do novo filme e relembra sua trajetória composta por situações malditas que fizeram com que ele transpusesse seus pesadelos íntimos às telas.
NM – Mojica, o senhor revolucionou o cinema brasileiro com uma temática nunca antes abordada na cultura cinematográfica de nosso país. Nenhum cineasta havia ousado com o terror até os anos 60. Como surgiu essa abordagem do macabro, do gosto pela morte, da predileção pelo além-túmulo?
Mojica – Tudo começou em outubro de 1963, quando tive um pesadelo medonho. Sonhei que era arrastado por coveiros em um cemitério e colocado dentro da minha própria tumba. A partir desse dia começaria uma revolta interna dentro de mim que fez com que eu moldasse o personagem Zé do Caixão, um coveiro desiludido em busca de um filho perfeito. Rodei o primeiro de uma série de filmes com o personagem Zé do Caixão, “À meia-noite levarei sua alma”, lançado em 1964. Tenho adoração pelo terror desde a infância. Sofro de insônia há 55 anos, o que faz com que eu coloque nas minhas fitas os pesadelos que tenho desde moleque. Eu tiro do sonho e jogo na fita. São abordagens que perturbam e desconfortam, como pessoas mortas levantando do túmulo e rituais sádicos.
NM – O “Zé do Caixão” é um personagem genuinamente brasileiro? Confunde-se criador e criatura?
Mojica – O Zé marcou por ser brasileiro e original. Não imita Drácula, nem lobisomem, nem serial killer mascarado, nem aquelas múmias dos gringos. É coisa nossa. Mexo com quimbanda, superstição, histórias macabras sobre terreiros e cemitérios, cultura popular. O personagem vingou e deu certo até fora do país (lá fora sou chamado de Coffin Joe, tradução literal). Até hoje uso o estilo do Zé e todos os fãs me chamam de Zé. Mojica, só para alguns. Por causa do sucesso de “À meia-noite” rodei, em 1967, a continuação, “Esta noite encarnarei no teu cadáver” (foto ao lado), ainda mais macabro e assustador. E colorido, outra inovação! O final da trilogia, “Encarnação do demônio”, sairia nos anos 60; porém era época de Regime Militar e fui barrado. Ameaçavam cortar o título da fita, censurar as cenas com tarjas e retirar o som das seqüências. Queimariam o negativo e me prenderiam, caso rodasse filmes de terror.
NM – O cinema de Mojica pode ser considerado uma história de luta com pouca verba?
Mojica – Sempre lutei para conseguir verba para rodar meus filmes. Como a tarefa era difícil, fazia – e ainda faço – meu cinema na garra. Aos 10 anos de idade dirigi “O juízo final”, logo após ganhar uma câmera. Nos anos 50 passei a fazer filmes em 35 milímetros. Não consegui finalizar “Sentença de Deus”. Tentei termina-lo três vezes, mas houve tragédia envolvendo o elenco, e esta produção foi considerada maldita. Não deu certo, e resolvi lançar um livro homônimo sobre a história do filme. Com a verba rodei o primeiro Cinemascope brasileiro, “A sina do aventureiro”, em 1958, fita com traços de faroeste e pouco orçamento. O público gostou, no entanto foi visto como escandaloso por causa da cena de duas mulheres nuas tomando banho na cachoeira. Até um grupo de padres tentou barrar a fita. Para satisfazer os religiosos, dirigi, em 1961, um filme para crianças, “Minha vida em tuas mãos”. Na história, muitos padres, freiras e um enredo agradável. Mas realmente não satisfazia meu gosto esse estilo água-com-açúcar. Daí fiz o “À meia-noite”.
NM – Para compensar havia apoio do público e dos exibidores?
Mojica – Nem pensar. Muitos “desciam o pau” no gênero, recusavam-se projetá-los nos cinemas. Perseguido pela Ditadura, pelos padres e por aquela parcela do público que não aceitava meus filmes, passei maus bocados no final dos anos 60. Em 40 anos três produtores que atuaram comigo morreram. Fiquei praticamente sozinho. Só mesmo no século XXI voltaram a “enxergar” meu cinema. Hoje me valorizam, e devo muito ao amigo Paulo Sacramento, da produtora Olhos de Cão, pois, com ele – e outros tantos parceiros – consegui rodar o final da trilogia, “Encarnação do demônio”.
NM – “Encarnação” recebeu prêmios importantes, inclusive saiu-se o vitorioso do I Festival de Paulínia, com sete prêmios, inclusive o de melhor filme. Pretende causar polêmica com o “Encarnação”?
Mojica – É, sem dúvida, meu maior filme de terror. Muito bem narrado, construído e assustador. Escolhi a dedo os artistas, por mérito: Zé Celso Martinez Correa, Milhem Cortaz, Luís Mello, Adriano Stuart, Rui Resende, Cristina Aché, Helena Ignez e Jece Valadão. Ah, fique claro que Valadão morreu durante as filmagens não por maldição, mas por enfermidade. Ele até fez questão de reunir a imprensa e dizer: “Se eu morrer nesta fita, o Mojica não terá culpa. Estou doente”. É um filme chocante e que perturba. Há cenas reais de suspensão de corpos por ganchos, baratas, porcos mortos. A questão do filho persegue ainda o Zé na fita. Ele continua alucinado para gerar o filho perfeito. Tive de “levar” o personagem ao manicômio e à cadeia para justificar a minha idade, já que se passaram 40 anos desde “Esta noite”. Recebi homenagens pela produção, que foi selecionada para o Festival de Veneza. O filme será distribuído pela Fox. Aguardem!
NM – Os mortos-vivos recriados pelo senhor vieram antes mesmo dos defuntos norte-americanos de George A. Romero. Houve influência do Mojica nos Estados Unidos?
Mojica – Acredito que sim. Nos anos 90, ao percorrer festivais e mostras de cinema de terror nos EUA, os críticos de cinema de lá diziam sobre essa influência. Falaram que eu dei o pontapé inicial, e eles utilizaram a idéia. Os produtores de Freddy Krueger (da série de filmes “A hora do pesadelo”) afirmaram que as unhas do personagem foram baseadas nas minhas.
NM – E as famosas unhas do Zé do Caixão, aonde foram parar?
Mojica – As minhas unhas eram naturais. Faziam parte da ideologia do personagem, que queria provar que a natureza erra também. Então as deixei crescer para provar: “se eu não as cortar até que ponto chegam?”. Por 40 anos cultivei-as. Atingiram tamanhos exorbitantes, o que fez com que atrofiasse minhas mãos. Precisei cortá-las. Mas elas estão guardadas. Hoje o que comanda mesmo é minha voz. Adoram esse tom grave meio maquiavélico, parece algo que vem do inferno e é do demônio. Lá fora ninguém me dubla e sempre usam legendas. Querem ouvir essa voz, que acabou tomando o lugar das unhas.
Mojica coordena Congresso Transcultural em São Paulo
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O cineasta José Mojica Marins promove, no próximo dia 16 em São Paulo, o I Congresso Transcultural e Teosófico. O evento tem início às 14 horas. Serão discutidos temas ligados a crenças, filosofia, religião e cultura brasileira. Haverá apresentações musicais, exibição de filmes, fórum de discussão e sorteio de prêmios e ingressos para o novo filme de Mojica. Mais informações: producaozedocaixao@hotmail.com ou (11) 3337-4440.
Mais sobre o artista
José Mojica Marins nasceu em São Paulo no dia 13 de março de 1937. Rodou pouco mais de 30 filmes, dentre eles terror e produções na Pornochanchada. Dirigiu filmes polêmicos que foram censurados, como Estupro/Perversão (1979). Gravou marchas carnavalescas com o tema Zé do Caixão. No Largo do Arouche, localizado no bairro Santa Cecília, São Paulo, montou os estúdios que preserva até hoje. Pai da atriz vampiresca Liz Vamp, atualmente apresenta o programa “O estranho mundo do Zé do Caixão”, exibido pelo Canal Brasil sempre às sextas-feiras, a partir da meia-noite.
Mojica teve a vida biografada em “Maldito: A vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão”, de Ivan Finotti e André Barcinski, e “Prontuário 666”, de Samuel Casal, lançado esta semana.
Outros filmes (direção)
O estranho mundo de Zé do caixão (1968)
O Ritual dos sádicos – O despertar da besta (1970)
Finis Hominis – O fim do homem (1971)
Quando os deuses adormecem (1974)
O exorcismo negro (1974)
A estranha hospedaria dos prazeres (1976)
Inferno carnal (1977)
Delirios de um anormal (1978)
A hora do medo (1986)
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(*) Entrevista publicada no jornal Notícia da Manhã, periódico de Catanduva, na edição do dia 08/08/2008. Créditos para a primeira fotos de José Mojica Marins: Felipe Brida. Outras fotos: Divulgação.
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