sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Especiais sobre Cinema


Restauração de “São Bernardo” realça visão capitalista corrosiva de Leon Hirszman (*)

Felipe Brida

Lançado em 1972 após sete meses de censura pelo Regime Militar, o filme “São Bernardo”, baseado na obra de Graciliano Ramos escrita em 1934, sai agora em um DVD especial distribuído pela Vídeo Filmes. O lançamento é resultado do projeto de restauro digital da obra de Leon Hirszman (1937-1987), diretor do longa-metragem. Encabeçam o trabalho de restauração o crítico de cinema Carlos Augusto Calil, os irmãos Lauro e Eduardo Escorel, diretores de fotografia, e os filhos do cineasta, Maria e João Pedro Hirszman.
“São Bernardo” retrata a vida do modesto caixeiro-viajante Paulo Honório (Othon Bastos), que, no interior de Alagoas, enriquece de uma hora para outra e torna-se um homem rude e inescrupuloso. Adquire terras, escraviza seus funcionários e tenta de todas as formas comprar a fazenda de São Bernardo. Arranja um casamento forçado com a professora Madalena (Isabel Ribeiro), a qual a trata como objeto. O conflito entre o casal se intensifica quando Madalena resolve se livrar da dominação do marido.
Em 1974 “São Bernardo” recebeu prêmios em diversos festivais de cinema no Brasil, dentre eles Gramado. A obra restaurada teve sua primeira exibição em tela de cinema na noite de abertura do 41º Festival de Brasília de Cinema Brasileiro, no dia 18 de novembro. O Teatro Nacional recebeu um público de 600 pessoas e contou ainda com a presença dos três últimos integrantes vivos da produção: os atores Othon Bastos e Nildo Parente e o diretor de fotografia Lauro Escorel.
Em entrevista especial ao Notícia da Manhã, o ator Othon Bastos relembrou as dificuldades em se adaptar a obra de Graciliano Ramos para o cinema em plena época do Regime Militar. Confira.


NM – Othon, diante do período turbulento do Regime Militar, em épocas de “Brasil: ame-o ou deixe-o”, como foi construir o personagem Paulo Honório?

Bastos – Vivíamos uma época de repressão, era difícil se manifestar naqueles anos. O personagem não poderia ser outro em circunstância do período que passávamos então: Paulo Honório é rude, frio, perturbado. Ele não aceitava idéias socialistas, revolucionárias. Chega ao ponto de combater o padre, acusando-o de ser comunista. E como poderia amar uma mulher que dizia a realidade, que os empregados da fazenda deveriam receber melhor tratamento, um salário digno? Paulo Honório é a imagem do capitalismo selvagem e violento – ele vem do nada e rapidamente atinge a ascensão, e torna-se um fazendeiro inescrupuloso. E ao mesmo tempo um opressor. Falar desses assuntos durante o Regime Militar era uma questão polêmica. Ao decorrer do filme (e do livro) fica evidente a auto-destruição daquele homem, reflexo dos tempos modernos. É sem dúvida um personagem difícil e que ainda hoje incomoda. As questões do filme e do livro não envelheceram e continuam super-atuais.

NM – O senhor foi um dos rostos marcantes do Cinema Novo, talvez por ter se sobressaído com personagem-chave do filme de maior destaque desse período, “Deus e o Diabo na terra do sol”, dirigido por Glauber Rocha. Como era trabalhar na efervescência do cinema de vanguarda no Brasil?

Bastos – Eu entrei no Cinema Novo pelas portas do fundo; não fazia parte da elite do Cinema Novo, composto por Glauber Rocha, Ruy Guerra, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e o próprio Leon Hirzsman. Inicialmente, não tinha muita ligação com esse grupo que pensava política e socialmente o movimento cinematográfico. Comecei mesmo em “Deus e o diabo”, em 1964. Depois desse filme, tornei-me a própria imagem do Cinema Novo. Mais tarde, devido a convites, comecei a andar com os fundadores do Cinema Novo. Fiz poucos filmes desse período, aliás antes de “Deus e o Diabo” participei em ponta de dois filmes inaugurais do movimento. Mas o que marcou mesmo foi a figura dual e impressionante do Corisco na obra máxima de Glauber. Trabalhar em cinema nesse período era escolher papéis e saber aonde deveríamos pisar para não ser “comido” pelo Regime Militar. Eram tempos duros.

NM – Antes, diretores e atores estavam à mercê da repressão no Brasil. E hoje, é possível apontar um inimigo cuja classe artística fica acuada?

Bastos – Nos anos 60 e 70 tínhamos um inimigo comum e todos sabiam quem era ele. Sabíamos aonde pisar, como driblar o sistema e, claro, tínhamos a noção de que qualquer passo errado poderia se transformar em uma situação de vida ou morte. O risco era iminente não só para os artistas, mas para políticos e pensadores. Atualmente não sabemos quem são nossos inimigos. Talvez o maior deles seja a parte financeira: muitos diretores e atores tentam fazer cinema, mas por falta de incentivo acabam parando. Alguns conseguem verba com patrocínio, outros recorrem à ajuda estrangeira. Fazer cinema no Brasil hoje é um trabalho árduo e penoso.


Saiba mais sobre o ator

Nascido em Tucano, Bahia, no dia 23 de maio de 1933, Othon Bastos atua em cinema e televisão desde os anos 60. Iniciou a carreira como ator em 1962 participando de uma ponta no filme “Tocaia no asfalto”. No cinema trabalhou em mais de 40 filmes e foi premiado três vezes: melhor ator por “Os deuses e os mortos” em 1970 no Festival de Brasília e na mesma categoria por “São Bernardo” em 1974 no Festival de Gramado, e ator coadjuvante por “Bicho de sete cabeças” em 2002 no Grande Festival de Cinema Brasileiro. Trabalhou em mais de 40 filmes, dentre eles “Bicho de sete cabeças” (2001), “Mauá – O imperador e o rei” (1999). Atuou em 30 novelas, dentre elas “Roque Santeiro” (1985), “Selva de pedra” (1986), “Despedida de solteiro” (1992), “A padroeira” (2001) e “Desejo proibido” (2007), e minisséries como “Desejo” (1990), “O quinto dos infernos” (2002) e “Mad Maria” (2005).


(*) Entrevista publicada no jornal Notícia da Manhã, periódico de Catanduva, na edição do dia 05/12/2008. Crédito para a primeira foto, cena de "São Bernardo": Divulgação. Duas outras fotos: Felipe Brida

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