França,
início do século XIX. Jean Valjean (Hugh Jackman) cumpre pena na cadeia por ter
roubado um pão para o filho pequeno de sua irmã. Quando posto em liberdade, é
ameaçado pelo inspetor Javert (Russell Crowe), que aposta vê-lo em breve cometendo
outro delito. Quase 20 anos se passam. Valjean torna-se um homem de bens, proprietário
de uma fábrica. Tenta se redimir levando adiante uma nova vida, porém a todo
momento acredita estar sendo vigiado pelo temível Javert.
Há
qualidades e pontos fracos na versão cinematográfica do musical da Broadway escrito
por Alain Boublil e Claude Michel Schönberg, por sua vez inspirado no volumoso
romance de Victor Hugo. Já houveram inúmeras adaptações para as telas, como a
de 1998 (de Bille August, com Liam Neeson e Geoffrey Rush), a de 1935 (a melhor
de todas, com Charles Laughton e Fredric March), a de 1952 (de Lewis Milestone)
e uma de 1958, pouco conhecida do público, de quase 4 horas de duração, com
Jean Gabin. Mas pela primeira vez, agora, uma em formato puramente musical, na
verdade um tiro no escuro, pois muita gente não assimila a linguagem, em que os
atores cantam um para o outro, em um mise-em-cene sofisticado, a la teatro (as
pessoas acham um pé no saco, vamos ser sinceros).
Não
é um filme didático nem fácil de digerir (as tragédias sempre acontecem). Portanto
é preciso entender o contexto histórico da França para que as referências (e as
resoluções) da trama dêem significado ao público: primeiramente a história está
encravada na primeira década do século XIX, durante a batalha de Waterloo
(1815), 15 anos depois da Revolução Francesa, no final do governo do imperador
Napoleão Bonaparte. Diga-se de passagem, um período turbulento, onde se arrastam
mazelas da virada do século: fome, crise econômica, população à míngua nas
ruas, governo opressor e guerras por toda a Europa. Em meio ao caos da urbe,
surge o protagonista, Jean Valjean (um bom trabalho de Hugh Jackman, num
esforço digno de elogios para compor um personagem maduro e em constante crise
com sua consciência). Ele cumpriu pena por furto de pão, e agora posto em
liberdade, é hostilizado pela sociedade, que já era podre e miserável. Some do
mapa por um tempo, e anos depois reaparece como um próspero empresário que
oculta o nome verdadeiro. Na sua fábrica, aproxima-se de uma funcionária, a
pobre Fantine (Anne Hathaway, primorosa, que dispensa comentários nos 15
minutos que lhe renderam o Oscar de atriz coadjuvante). Rejeitada pelas colegas
de trabalho, ela é expulsa da fábrica por ser mãe solteira (e tentar esconder a
criança); sem espaço na sociedade, passa a se prostituir para ganhar dinheiro,
enquanto Valjean assume a responsabilidade da filha pequena dela, Cosette. A
partir daí, na segunda parte da história (1832, durante os fervorosos motins de
junho na França), pequenas outras tramas se juntam, sempre tendo como foco
Valjean, sua crise de consciência (por ter sido ladrão no passado e também por
esconder a identidade) e, acima de tudo, a incansável fuga do cidadão das mãos do
inspetor Javert (Russell Crowe, fraco e sem jeito), que o fareja pelos cantos
imundos da cidade.
Sem
entrar em detalhes e cometer spoiler, a história geral do filme é essa. Agora
vamos destrinchar com o lado crítico: o novo “Os miseráveis” resulta num
projeto dual, como descrevi lá em cima: há elementos bons e muitos sofríveis. Os
pontos positivos: parte técnica impecável, como direção de arte, fotografia e
figurino, que reconstituem uma França asquerosa, imunda, com mazelas sociais
inacabáveis; parte do elenco dá conta do conteúdo, em especial o ator principal
(Jackman) e a primeira atriz coadjuvante (Anne Hathaway), que emociona qualquer
um quando canta “I dreamed a dream”. Os pontos discutíveis: a longa duração (de
quase duas horas e quarenta) por ser excessivamente musical (o que afasta boa
parcela do público), um vilão meia-boca (Crowe tem uma triste voz gutural
quando põe as cordas vocais em ação) e a falta de domínio de direção de Tom
Hooper (ele não sabe dar o tom intimista exigido em um roteiro desse naipe,
tampouco não tem domínio de câmera).
Há
canções belíssimas na trilha sonora, como a da abertura, “Look down”, que volta
a se repetir de forma incidental ao longo do filme, além de outras empolgantes,
como “At the end of the day”, e a poética “Suddenly”.
Já
o alívio cômico fica num nível errático, abaixo da média, em certas sequências solto
demais e sempre se repetindo, dando voltas sem porquês – quem interpreta é a
dupla Sacha Baron Coen e Helena Bonham Carter, dois malandros ultracoloridos que
vivem de pequenos furtos no bar/prostíbulo que tomam conta.
Ainda
sobre o elenco, na segunda parte da história temos Eddie Redmayne, Amanda
Seyfried e Samantha Barks, que não acrescentam em termos de presença. Por isso,
para mim, a metade inicial do musical “Os miseráveis” deslumbra, colocando a
outra parte no chinelo – ou seja, é dos filmes que começa bem e vai decaindo no
desenvolvimento.
As
falhas prejudicam o produto final. Saí da sessão esgotado – e pasmo, com a
sensação de ter assistido ao “filme mais irregular dos últimos tempos”.
Fica
visível uma produção bem cuidada no aspecto técnico, só que talhada de defeitos
de fácil identificação. Aliás, o filme foi rodado em estúdios na Inglaterra, cujo
orçamento passou U$ 60 milhões, rendendo pouco mais que o dobro nas salas de
cinema.
Ora
pois, a Academia aprovou. Aprovou além da conta. O musical recebeu oito
indicações ao Oscar, incluindo melhor filme, e ganhou três, nas categorias
atriz coadjuvante, maquiagem e mixagem de som. Vai entender...
O
diretor britânico Tom Hooper, de “Maldito Futebol Clube” (2009) e vencedor do
Oscar de direção por “O discurso do rei” (2010), sequer teve o nome lembrado na
premiação. Talvez tenham reconhecido a falta de mão cinematográfica do cineasta
atrás de uma câmera.
Enfim,
“Os miseráveis” está nas locadoras, dividindo a opinião da crítica e do
público. Por Felipe Brida
Os miseráveis (Les misérables). EUA/Inglaterra,
2012, 158 min. Musical/Drama. Dirigido por Tom Hooper. Distribuição: Paramount
Pictures