terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Resenha Especial


“Os olhos da cidade são meus”: horror, alienação e metalinguagem na obra máxima de Bigas Luna



Num velho casarão, mãe e filho moram no meio de pombos e caramujos de estimação. A senhorinha, idosa e rouca, faz tricô e superprotege John, seu único filho. Ele é um cinquentão solteiro, que trabalha em um hospital como assistente de oftalmologista. Auxilia os pacientes nos exames de vista e coloca lentes de contato. Certa vez, é humilhado por uma paciente; a mãe dele (que não tem nome no filme), lá de casa, consegue ouvir a conversa por telepatia e espera ansiosa o filho chegar em casa. Quando John entra pela sala, ela faz uma sessão de hipnose, uma forma de se vingar daquela mulher que gritou com ele. John é induzido a matá-la e trazer consigo os olhos da vítima. Na hipnose, a mãe repete breves frases como mantras: “Siga a luz”, “Sinta! Isso o fará forte”, “Sinta sua força e seu poder”. John, de olho fechado, cai para dentro de si. As imagens na tela ficam cíclicas, com pêndulos num fundo preto, os sons são de batidas como um coração pulsando lentamente, aparecem formas giratórias como vindas da Op Art. Os caramujos sobem nos pombos, a mãe grita, o filho entra em transe girando numa espiral preto-e-branca (uma clara analogia/homenagem a “Um corpo que cai”, de Alfred Hitchcock, em que James Stewart, que sofria de acrofobia, rodava em uma onda circular e labiríntica). Hipnose realizada, o filho sai pelas ruas para caçar os olhos da mulher. Enquanto isso, a mãe, em sua cadeira de balanço, o controla por telepatia - as vozes vão e voltam na cabeça de John como um eterno eco.
Transcorridos 22 minutos de filme, um outro filme se revela: descobrimos que tudo aquilo não passava de uma sessão de cinema, de um filme intitulado “A mamãe”. Duas meninas assistem àquele suspense de uma mãe que controla o filho por telepatia e o hipnotiza a matar pessoas. Patty (Talia Paul) esquiva o olhar no momento em que vê na telona John arrancar o olho da primeira vítima, aquela mulher que o humilhou. Pessoas sentadas na poltrona daquele antigo cinema de rua olham para baixo, com a cara de estranhamento diante de tamanha violência. John extirpa o olho sem dó após rasgar a garganta da pobre mulher com um bisturi. Patty coça os olhos, a lente que usa está ressecada, então a retira e reclama com a amiga, Linda (Clara Pastor) – diferente de Patty, Linda está concentrada ao filme com um saco de pipoca no colo. De volta para o ecrã, mãe e filho fazem nova sessão de hipnose, após ela contar que John foi demitido do hospital. Ela quer que seu menino arranque os olhos de todos, e diz, convicta, que os olhos da cidade serão seus. John sai à noite a pé e entra numa sessão de cinema, para assistir ao clássico filme de ficção científica “O mundo perdido” (1925). Senta-se numa poltrona estratégica, de onde vê grande parte do público, numa sala onde há poucos espectadores. Carrega consigo ferramentas, como uma chave de fenda, e o inseparável bisturi. John, em silêncio, passa a atacar um a um dentro do cinema, no escurinho da sessão. A partir desse ponto, os dois filmes se misturam. Ficção e realidade tornam-se um amálgama. John ataca as vítimas no cinema, levando os olhos para sua coleção, e as duas garotas que assistem ao filme de John se deparam com um verdadeiro assassino na sala onde estão. O assassino é um atirador perturbado que porta um revólver com silenciador. Olha o relógio e sai matando; inicialmente as vítimas estão no banheiro, depois foca nas garotas da bomboniere, até que planeja um atentado dentro da sessão. Enquanto isso, Patty passa a escutar vozes que se fixam em sua mente, delirando, e para ela, mais que qualquer outro ali, realidade e ficção se transformam num tormento.
Essa é a obra máxima de torpor, alienação e fúria do diretor catalão Bigas Lunas (1946-2013), também roteirista do filme ao lado de Michael Berlin, conhecido por séries como “MacGyver - Profissão perigo” (1985-1992) e “The exile” (1991).




Rodado em Barcelona e Madri, na Espanha, foi seu primeiro (e um dos poucos) filme falado em inglês, contando com um elenco de primeira linha, que fazem uma entrega excepcional.  Zelda Rubinstein, a médium Tangina no filme “Poltergeist: O fenômeno” (1982) e que voltaria ao papel nas duas continuações, “Poltergeist II: O outro lado” (1986) e “Poltergeist III: O capítulo final” (1988), interpreta a mãe, uma senhora isolada num casarão que protege o filho a todo custo e o hipnotiza para cometer os assassinatos e arrancar os olhos das vítimas. Baixinha e com voz rouca, está num de seus trabalhos mais exatos (o papel originalmente seria de Bette Davis, que teve conflitos na agenda e não pode assumi-lo). Complementando a atuação dela, está Michael Lerner, falecido recentemente aos 81 anos, que foi indicado ao Oscar de ator coadjuvante por “Barton Fink – Delírios de Hollywood” (1991); ele faz o assistente de oftalmologista, que sai para caçar os olhos após as sessões de hipnose da mãe controladora.
Luna já discutia obsessão e voyeurismo desde seu primeiro filme, o suspense espanhol “Bilbao” (1978). Em “Os olhos da cidade são meus” (1987) a obsessão quadruplica, fica mais evidente e agressiva, e o diretor usa, sem medo ou restrições, a extrema violência, em que coloca os personagens numa bolha de solidão que os levam à neurose. Ele volta seu olhar amargo sobre as relações humanas e principalmente sobre a dependência materna, em que mãe e filho continuam conectados (aqui por telepatia) a ponto de atingir a barbárie.
É uma obra que escancara a metalinguagem como força-motriz, que expande horizontes possíveis (e também os impossíveis) do cinema. Um filme dentro de um outro filme e que, por fim, vira um terceiro filme. Flertando com o cinema fantástico, Luna adentra mais fundo na ideia metalinguística ao recorrer ao “jogo de espelhos”, que confunde quem assiste. Realidade e ficção tornam-se algo único. As vozes na cabeça do assassino de “A mamãe” ecoam na jovem que ali vê o filme, e as mesmas vozes perturbam o matador com revolver que está à espreita no cinema. São muitas camadas e cenas poderosas de loucura e crimes, com um desfecho sugestivo.
Vejo no filme fortes laços com “O gabinete do Dr. Caligari” (1920), a obra-prima inaugural do Expressionismo Alemão, que tratava de um médico e cientista que hipnotizava um rapaz, para que ele cometesse crimes. A manipulação e a obsessão estavam lá presentes. No filme projetado na tela grande, “A mamãe”, os olhos extirpados por John carregam a nova experiência visual proposta pelo olho cortado com navalha de “Um cão andaluz” (1929, de Luis Buñuel, outro diretor espanhol): abandonar o velho olhar sobre as coisas, sobre o velho cinema, e olhar para não só para o novo, mas também para dentro. Luna inaugura, com seu filme-chave, uma nova maneira de ver o cinema de horror.
Filme de terror precisa de clima e sensações. Aqui, a angústia e o tormento (lembrando que o título original em espanhol é “Angustia”) são marcas presentes, e para tal, Luna utiliza planos fechados, capturando o olhar vidrado das personagens na sessão de cinema, assim como o do assassino que arranca olhos, ou mesmo de sua mãe trancada em casa. São ângulos sufocantes, de prisão, intercalados entre closes e primeiro planos.
Desde a abertura o filme é provocativo: antes dos créditos, vem um texto lateral com comentários narrados. Eles falam que há mensagens subliminares no filme que será assistido, e aqueles que passarem mal, devem deixar a sala. E por fim, fica o alerta: não conversem com estranhos que estejam ao lado. Baita estratégia de marketing que objetivava lançar medo e tensão no público e gerar burburinhos.
A entrada do assassino real (papel de Àngel Jové, ator espanhol que fez todos os filmes da primeira fase de Luna, entre 1978 e 1990), o matador com o silenciador, que repete, amedrontado, a palavra “Mãe!” antes de mandar bala, abria uma discussão sobre o poder das imagens do cinema na mente de indivíduos com algum grau de perturbação: teria o matador se inspirado no filme “A mamãe” para cometer os crimes dentro do cinema? Será que ele já havia visto o filme e tal impacto o levou à loucura? Há casos de assassinos que mataram dentro de um cinema e disseram ter se inspirado no filme visto. Na Califórnia, em 2008, um rapaz esfaqueou duas pessoas num cinema na exibição de “O sinal” (2007), motivado por uma cena de esfaqueamento que aparecia no filme de terror; um cidadão fantasiado de Coringa abriu fogo numa sala de cinema no Colorado, em 2012, durante a sessão da meia-noite de “Batman: O Cavaleiro das Trevas ressurge” (2012) – ele matou 12 e feriu 70; no Brasil, um caso tornou-se notório: um estudante de Medicina assassinou três e feriu quatro num cinema do bairro Morumbi, em São Paulo, em 1999 (o autor disse que a motivação foi o filme “Clube da luta”). Mais uma vez a ficção se torna realidade, e vice-versa.
“Os olhos da cidade são meus” é uma fita cult enigmática e criativa, obrigatória para os fãs do cinema de horror. Saiu em várias versões: a original de cinema, com 85 minutos (lançada pela Versátil no box “Obras-primas do Terror – Vol.14”), uma edição maior, de 95 minutos, lançada apenas na Argentina na época da estreia, e há ainda uma versão menor, com dois minutos a menos, distribuída em Portugal.

Resenha escrita especialmente para o livro "Obras-primas do Terror - Anos 80 - Filmes essenciais da coleção" - fotos abaixo, lançado pela Versátil Home Video em dezembro de 2023. Livro disponível para venda no site da Versátil, pelo link https://www.versatilhv.com.br/.../livro-obras.../5500608






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