O mundo é culpado
Ann Walton (Mala Powers) está noiva e planeja o casamento. Um dia, ao
voltar sozinha do trabalho, à noite, é estuprada por um desconhecido. Em
choque, Ann abandona o noivado, troca de identidade e vai para a Califórnia na
tentativa de reconstruir sua vida.
Numa época em que o cinema não abordava temas tabu, devido ao código de
censura que podava as produções em Hollywood, a diretora Ida Lupino quebrou o
silêncio ao fazer “O mundo é culpado” (1950), um melodrama com traços noir
ainda mais duro e difícil que outro filme, da mesma época, que falava de
estupro, “Belinda” (1948 – que deu a Jane Wyman o Oscar de atriz, na pele de
uma garota surda vítima de violência sexual). “O mundo é culpado” explora a dor
e todas as exposições possíveis à sociedade de uma jovem violentada ao voltar
do trabalho – que acaba abandonando o noivado e mudando-se para outro estado. A
atriz Mala Powers, em um de seus primeiros filmes, protagoniza com voz e
sentimento essa personagem, e depois faria filmes importantes, como a premiada
versão de 1950 de “Cyrano de Bergerac”.
Foi a primeira produção da lendária RKO com a The Filmakers, a companhia
fundada por Ida Lupino junto do marido Collier Young (que era roteirista) e o
parceiro deles Malvin Wald – em “O mundo é culpado” os três assinam o roteiro,
e aqui já se apontava o que no futuro se chamaria de “cinema autoral”. Na
época, o roteiro foi rejeitado devido ao conteúdo espinhoso, um tabu para
discutir nas telas (o estupro), além de diálogos considerados inapropriados,
pois se mencionavam termos como “maníaco sexual” e “estupro”. Trechos de
diálogos e cenas foram retirados pelo Código Hays (o código de censura que
existiu em Hollywood entre as décadas de 1930 e 1960), deixando o filme
“limpo”, com ideias subentendidas (por exemplo, o estupro não aparece, o crime
ocorre numa penumbra, com vultos, e escuta-se um berro e uma mão misteriosa no
rosto da vítima).
Vale uma nota para a interessante carreira da diretora Ida Lupino
(1918-1995): ela nasceu em Londres, de uma família do ramo do show business,
incentivada a ser atriz pela mãe desde os 14 anos; começou como atriz em 1931,
participou de mais de 100 filmes como atriz, muitos deles no auge do cinema
noir, como “Seu último refúgio” (1941) e “Mistério de uma mulher” (1941), e até
fim dos anos de 1970 atuou em séries e filmes para a TV. Foi casada três vezes,
com grandes nomes do cinema – primeiro com o ator e diretor Louis Hayward,
depois com o roteirista e parceiro na The Filmakers Collier Young e por fim com
o ator Howard Duff. E numa época dominada por homens, arrebentou barreiras ao
ser pioneira na direção: de 1949 a 1968 dirigiu uma dezena de filmes, além de
séries. Fez filmes de temáticas sociais e muitos deles dividiram opinião por
serem tabu: “Mãe solteira” (1949), sua estreia na direção, falava de uma
garçonete abandonada grávida pelo namorado; “Quem ama não teme” (1949), seu
segundo filme, era um melodrama sobre o fim do sonho de uma dançarina diagnosticada
com uma terrível doença; “O mundo é o culpado” (1950), terceiro filme, sobre
estupro; “O bígamo” (1953) tratava de traição e bigamia. E todos com clima
noir. Infelizmente Ida nunca foi reconhecida em grandes prêmios, como o Oscar
(sequer foi indicada a nada).
“O mundo é o culpado” foi lançado recentemente em DVD pela Obras-primas
do Cinema, numa cópia excelente. E quem quiser conhecer outros filmes da
diretora, há um box em homenagem a ela, em DVD, da Versátil, chamado “A arte de
Ida Lupino”, com quatro filmes (os já citados “Mãe solteira”, “Quem ama não
teme” e “O bígamo”, e ainda um de seus últimos como diretora, a comédia “Anjos
rebeldes”, de 1966).
O mundo é culpado (Outrage). EUA, 1950, 74
minutos. Drama. Preto-e-branco. Dirigido por Ida Lupino. Distribuição:
Obras-primas do cinema
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