sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Cine Lançamento



Mãe!

Casal vive harmoniosamente em um casarão no campo. A esposa (Jennifer Lawrence) é uma jovem dona de casa, dedicada na restauração do lugar, que tempos atrás sofreu um terrível incêndio; o marido (Javier Bardem), homem mais velho, busca inspiração para escrever seu novo livro. A tranquilidade dos dois é testada quando pessoas estranhas iniciam uma peregrinação sem fim àquele acolhedor ambiente. O casarão virará palco de invasões, violência, guerras e até assassinatos, num caos ininterrupto.

Ame-o ou deixe-o. Lema número um para o público que assistiu e ao que for assistir à hipnotizante obra-prima do cultuadíssimo diretor Darren Aronofsky, filme complexo, de inúmeras interpretações, causador de incômodos e mil e uma indagações. Fracassou nas bilheterias e foi injustiçado no Oscar e no Globo de Ouro (a rejeição nos Estados Unidos foi tamanha que o filme liderou indicações ao Razzie Awards, o Framboesa de Ouro, entregue aos piores do ano - nas categorias pior filme, direção, atriz para Jennifer Lawrence, roteiro, ator coadjuvante para Javier Bardem e atriz coadjuvante para Michelle Pfeiffer). Perseguição cruel a uma dos trabalhos cinematográficos mais originais e polêmicos dos últimos tempos – diferente dos americanos, os italianos, sempre mais sensatos, o acolheram no Festival de Veneza, onde concorreu ao Leão de Ouro.
Bom, escrever sobre “Mãe!” é um exercício complicado. Nessa altura do campeonato todo mundo já ouviu por aí que ele tem estreitos laços com passagens bíblicas, montado em torno de metáforas, camadas, símbolos e matizes que extrapolam o senso comum. É impossível resenhar este filme sem entrar em detalhes e opiniões aprofundadas. Para não cometer spoiler nem comprometer o conteúdo, se ainda não assistiu não leia o que vem a seguir. Combinado? Vamos lá...

Dos momentos iniciais até o desfecho, “Mãe!” lida com questões sobre a História da Humanidade, da criação do homem e da mulher, a partir da Bíblia, e como as pessoas enxergam o mundo onde vivem. O centro está em um casal, isolado em uma enorme casa no campo, cercado pelo verde, como o Jardim do Éden. Eles não têm nomes, aliás nenhum personagem da história os possui; no roteiro são chamados de “Ele” e “Ela”. De um lado, a jovem, que anda de lá para cá entre os cômodos e cuida do espaço com máxima atenção, enquanto ele é um escritor reservado, em busca de inspirações. A campainha toca, o marido recebe um senhor doente (Ed Harris, envelhecido), depois a mulher dele (Michelle Pfeiffer, sedutora e bem fotografada), em sequência os filhos deste casal, em pé de guerra, e assim vai chegando gente de todo naipe, etnia e idade, até que o lugar é infestado por pessoas desconhecidas. A casa sente as energias, transforma-se, na medida em que o humor da jovem se altera com os novos visitantes, que lá procuram paz, companhia e, acima de tudo, querem ficar ao lado do escritor, venerado por todos. Ela engravida, e a situação foge do controle – nesse antro mortes brutais ocorrem, surgem rituais e conflitos numa explosão atômica de sentidos e tormentos, com o ambiente minuto a minuto sofrendo depredações. Ela enlouquece, e o marido nunca se abala até que um novo incêndio coloca em risco a vida de todos ali dentro. Este é resumão do filme, de cabo a rabo, agora vamos tentar compreender as referências. Em entrevistas, o roteirista e diretor, Aronofsky, ressaltou a ideia por trás dos personagens; Jennifer é Gaia, a Mãe Terra, a Natureza Suprema, suscetível a dor, amor e fúrias, enquanto a casa representa o mundo, espaço de convivência para todos, lugar vivo, que é destruído sem piedade pelos habitantes. Bardem, Ele, é Deus, misericordioso, mas punitivo, que cria Adão e Eva (Harris e Michelle – repare que Ed Harris chega primeiro, e numa cena rápida está com a costela machucada; minutos depois Eva toca a campainha). Ao criar Adão e Eva, Ele faz nascer o riso, a tristeza, a volúpia, a guerra, os pecados; movidos pela curiosidade, Adão e Eva exploram o casarão, caem na tentação do cristal que Ele guarda a sete-chaves (que é a Maçã, da Bíblia) e logo são expulsos; Caim e Abel, os filhos, lutam, um assassina o outro numa briga violenta, trazendo adoradores para a casa. Outro ponto, Gaia engravida de Deus, dá origem ao Messias, o salvador, que, assim como o planeta e a natureza, é destruído por adoradores. Perceba que o filme divide-se em duas partes: a primeira metade, o Antigo Testamento, e da gravidez em diante, segunda parte, o Novo Testamento. Olha só quanta ideia!
Com estas ligações semióticas, o diretor e roteirista Darren Aronofsky investe em uma alegoria vitoriosa: de como a humanidade trata o planeta Terra, e como a natureza revida, além de tocar em temas adjacentes, como religião, ética etc. Gostou? Entendeu assim também? Pois este é um grande exercício de estilo do cineasta, sombrio, ousado, delirante, com drama e suspense psicológico que atinge níveis do gênero horror!
Não podemos nos esquecer que as obras de Aronofsky nunca foram de fácil aceitação ou entendimento (em particular “Fonte da vida”, “Pi” e “Cisne negro”). São desconcertantes, próprias para um público adulto mais cult. Em “Mãe!” propôs nova identidade ao seu cinema autoral, infelizmente rechaçado pela metade do público e pela maioria da crítica, estrangeira e brasileira. Eu me incluo no grupo dos que embarcaram na ideia, e volto a frisar, o resultado é extraordinário! Assista e tire suas conclusões!
Rodado no Canadá, teve orçamento de U$ 33 milhões, rendendo U$ 40 milhões no mundo inteiro, ou seja, fracasso... Como já passou nos cinemas, a oportunidade agora é assisti-lo em DVD ou em Blu-ray, recém-lançado pela Paramount Pictures. Confira, depois do filme, os dois bons especiais (making of) que vem junto. Boa sessão!

Mãe! (Mother!). EUA, 2017, 121 min. Drama/Horror. Colorido. Dirigido por Darren Aronofsky. Distribuição: Paramount Pictures. Disponível em DVD e Blu-ray


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