sexta-feira, 21 de junho de 2024

Resenhas especiais


O barato de Iacanga

Documentário sobre o histórico ‘Festival de Águas Claras’, ocorrido nos anos 70 e 80, que ficou popularmente conhecido como o ‘Woodstock Brasileiro’.

Formidável documentário para os amantes do rock brasileiro e de MPB, vencedor do prêmio do júri no Festival In-Edit e exibido no ‘Festival É Tudo Verdade’ de 2019. O filme resgata a trajetória de um jovem estudante de engenharia de 22 anos, que, em 1975, teve a ideia maluca de criar um megafestival de música no interior de São Paulo, nos moldes da Woodstock. O local: a fazenda de sua família, chamada de Santa Virginia, na cidadezinha de Iacanga, a 50km de Bauru e a 380km de São Paulo. Antonio Checchin Junior, o Leivinha, foi esse rapaz, idealizador de um projeto ousado, em plena Ditadura Militar, com inspiração no movimento Hippie, na liberdade do corpo e das drogas (na época as drogas era a maconha), contra o conservadorismo e contestando os atos autoritários do governo militar. A fazenda de Leivinha virou palco para o lendário festival ao ar livre, chamado de ‘Águas Claras’, e por nove anos, houve lá quatro edições do evento, reunindo um numeroso e diversificado público, com apresentação de artistas de renome.
Ao longo do documentário, acompanhamos os bastidores da realização do festival, da parte técnica trabalhando e operando som, a chegada dos músicos, a mobilização da cidade e as intercorrências, como chuvas fortes. São entrevistas da época, de arquivo, com os produtores, músicos e da população de Iacanga, bem como depoimentos atuais, de Leivinha e de artistas que se apresentaram, como Hermeto Paschoal e Paulinho Boca de Cantor. Num dos momentos do doc, moradores contam que o festival chamou tanto público que Iacanga, na época com menos de cinco mil habitantes, ficou desabastecida de remédios e alimentos!
A primeira edição do festival ocorreu por três dias, em janeiro de 1975 – chegou a ser autuado pela Polícia Federal, apontado como um evento subversivo com hippies, drogas e devassidão, segundo eles, ‘atentando contra a moral e os bons costumes’, como consta no boletim de ocorrência – a cópia do B.O. sai no livreto que vem junto ao DVD do filme lançado pela Versátil Home Video. Juntou cerca de 20 mil pessoas, muito acima do esperado.
A segunda edição – que é mais focada no filme, ocorreu seis anos depois, entre os dias 4 e 6 de setembro de 1981. Esse foi televisionado, com mais publicidade, subiram ao palco Raul Seixas, Sandra de Sá, Luiz Gonzaga, Hermeto Paschoal, Gilberto Gil, Alceu Valença e outros. Conseguiram até trazer João Gilberto, que evitava shows – os produtores contam que foi difícil levá-lo, e Gilberto considerou este o melhor show da sua vida. A segunda edição contou com 75 mil pessoas na plateia.
A terceira edição, em 1983, trouxe cantores como Fagner, Sivuca, Paulinho da Viola e Wanderléa, porém interrompido por uma chuva incessante, tendo de ser cancelados shows de Luiz Melodia e Clementina de Jesus, sem contar brigas de público e problemas técnicos.
A quarta e última edição veio durante o carnaval de 1984, com menor público, poucos recursos e menos artistas presentes.





O documentário musical resgata esse momento único e pioneiro de nossa cultura, um ‘hippismo à moda brasileira’, antes mesmo de existir o Rock in Rio. Nostálgico e bem editado, nos leva a um passeio imersivo na arte musical do Brasil em um período complexo, de transformações.
Saiu em DVD pela Versátil em parceria com a bigBonsai; vem com luva, em disco duplo contendo o filme e cinco horas de vídeos extras, além de um pôster com o cartaz original do festival, três cards e um livreto de 40 páginas. O filme também está disponível na Netflix e no canal Curta!

O barato de Iacanga (Idem). Brasil, 2019, 93 minutos. Documentário. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Thiago Mattar. Distribuição: Versátil Home Video


Almas gêmeas

A adolescente Juliet (Kate Winslet) muda-se com os pais da Inglaterra para a costa da Nova Zelândia. Na nova escola, conhece outra adolescente, Pauline (Melanie Lynskey), e ambas têm uma afinidade fora do normal. Elas desenvolvem uma forte amizade; juntas criam um mundo próprio, afastando-se da realidade. Quando a mãe de Pauline a flagra beijando Juliet, o mundo desaba sobre as duas, que serão obrigadas a se afastar.

Filme marcante dos anos 90, apontado por críticos do mundo todo como um dos mais importantes daquela década. Lançou Kate Winslet no cinema, que logo viraria estrela de Hollywood com ‘Titanic’ (1997), e teve como inspiração um fato verídico chocante que mexeu com a opinião pública da Nova Zelândia. O ‘Caso Pauline Parker e Juliet Hulme’ envolveu uma amizade que ultrapassou os limites e virou uma obsessão. O caso é datado de 1954, ocorreu na costa leste da ilha sul de Nova Zelandia, em Christchurch, uma cidade de médio porte, de estilo inglês. Na época Pauline tinha 16 e Juliet, 15 anos. Juliet é inglesa, vem com os pais para a cidade, tem comportamento forte e transgressor, desafiando professores, amigos e a família. Já Pauline é passiva, aceita tudo, vive bem com os pais. Quando a amizade das duas se fortalece, tudo poderá acontecer. Elas acabam criando um mundo paralelo, fogem de casa para viver aventuras pelos bosques, conversam com cavaleiros de pedra – um deles é o ator Orson Welles, de quem são fãs, elas inventam lugares com flores, uma delas adora as músicas de Mario Lanza e até o ‘veem’ cantando em sua frente. Acabam tendo um affair e são flagradas se beijando, causando um alvoroço na família – a mãe de Pauline chega a levar a menina à força a um psiquiatra, que detecta nela o ‘homossexualismo’ – palavra empregada erroneamente na época, considerado uma doença. Por isso, os pais de ambas resolvem afastar as duas – cuidado, spoiler - e como não havia mais a possiblidade de se encontrarem, bolam um assassinato terrível para fugirem e assim viverem juntas. O crime cruel ocorreu em 22 de junho de 1954, as duas mataram a mãe de Pauline com mais de quarenta tijoladas na cabeça.
O filme, um drama que vai mudando o tom para suspense no decorrer da história, tem enorme veracidade, pois é uma adaptação dos diários das garotas. Rodado na Nova Zelândia, país natal do diretor Peter Jackson, antes de se tornar conhecido pelas trilogias ‘O senhor dos anéis’ (2001, 2002 e 2003) e ‘O hobbit’ (2012, 2013 e 2014) – nos anos 80 e início dos 90 ele fez filmes de terror, terrir e scifi em seu país, como ‘Trash – Náusea total’ (1987) e ‘Fome animal’ (1992).




O filme venceu o Leão de Prata no Festival de Veneza e foi indicado ao Oscar de melhor roteiro – escrito por Jackson e Fran Walsh, casada com ele desde os anos 80 – os dois trabalham juntos, inclusive escreveram ‘O senhor dos anéis’.
Kate Winslet, nascida na Inglaterra, tinha na época 18 anos, foi seu primeiro longa, depois de fazer séries; também foi a estreia de Melanie Lynskey, atriz neozelandesa, na época com 16 anos, e que dá um show de interpretação – as duas são ótimas.
Originalmente tem 99 minutos de duração, mas foi lançado recentemente em DVD pela Classicline na versão intermediária, de 102 minutos – há uma estendida do diretor, de 108 minutos, que no Brasil não encontramos. Muito tempo atrás saiu em DVD numa edição de banca, nos primórdios do DVD, no início de 2000.

Almas gêmeas (Heavenly creatures). Nova Zelândia/Alemanha, 1994, 102 minutos. Drama/Suspense. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Peter Jackson. Distribuição: Classicline



Astrágalo

Presa por roubo, Albertine (Leïla Bekhti) pula os muros da prisão de Douellens, na França, para fugir. Ela cai, quebra um osso do pé chamado ‘astrágalo’, e se rasteja até a estrada, onde é socorrida por um desconhecido, o motorista Julien (Reda Kateb). Ele a leva para a casa de um amigo em Paris, e juntos iniciam um romance. Até que Julien é preso, e Albertine passa a ser procurada pela polícia.

‘Astrágalo’ é a segunda adaptação do romance autobiográfico ‘O astrágalo’, de Albertine Sarrazin (1937-1967), autora nascida na Argélia antes da independência, quando o país norte-africano era de domínio da França. Albertine teve uma vida trágica – com dois anos foi largada na rua pela mãe, adotada em seguida por um médico do Exército; foi estuprada aos 10 anos por um familiar, depois entrou para a prostituição. Presa aos 16 anos por roubo a mão armada a uma loja de roupas, recebeu sentença de sete anos; na cadeia escreveu poesia e romances. No reformatório de Doullens, fugiu, machucou-se e foi socorrida por um motorista de caminhão, Julien, mantendo, ambos, uma vida de crimes. Os dois foram presos diversas vezes, chegaram a se casar na cadeia, até que tiveram de ser afastados um do outro. Albertine trabalhou um rápido período como jornalista, teve relacionamento amoroso com uma amiga e publicou seu primeiro romance, ‘Astrágalo’, em 1964, que virou bestseller, obra que retrata sua vida. O livro originou uma primeira versão, de sucesso, em 1968, dirigido por Guy Casaril, com Horst Buchholz e Marlène Jobert (também argelina e mãe da atriz Eva Green) nos papeis principais. Albertine morreu aos 29 anos após complicações de uma cirurgia às pressas.
Parte dessa trajetória da controversa Albertine é relatada no filme – o longa-metragem já abre com Albertine, à noite, escapando do reformatório feminino de Doullens, onde cai, fere o pé – ela quebra o osso chamado ‘astrágalo’, e se rasteja até a estrada onde será socorrida pelo futuro amor de sua vida, um motorista que também é criminoso. Sem focar nos crimes que cometeram ao longo da vida, é mais um drama romântico de um casal marcado pelo passado, que tem de viver fugindo de lá pra cá. Com muitos closes e enquadramentos íntimos, tem uma belíssima fotografia PB, uma clara homenagem a Nouvelle Vague – o clima de tragédia, com aspectos de cinema noir, é uma constante no filme.
O elenco é bom, com Leïla Bekhti interpretando a protagonista Albertine - atriz de ‘O profeta’ (2009), onde conheceria o futuro marido, o ator Tahar Rahim, com quem é casada, e Reda Kateb como Julien – o ator também fez ‘O profeta’ e aparece hoje em muitos filmes franceses e americanos.




O roteiro adaptado do livro é de Brigitte Sy, uma atriz veterana que também dirige o filme – Brigitte dirigiu apenas dois longas com esse e atuou em mais de 35 longas, como ‘A guerra está declarada’ (2011) e ‘Vida selvagem’ (2014). Disponível em DVD pela Imovision, também pode ser assistido na Apple TV e na plataforma em streaming Reserva Imovision, uma parceria do cinema Reserva Cultural com a Imovision, que reúne todo o catálogo da distribuidora.

Astrágalo (L'astragale). França, 2015, 96 minutos. Drama/Romance. Preto-e-branco. Dirigido por Brigitte Sy. Distribuição: Imovision

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