sexta-feira, 28 de junho de 2024

Estreia da semana - Nos cinemas

 

Aquela sensação que o tempo de fazer algo passou (2023)

 

Comédia dramática BDSM – sigla que significa ‘jogos sexuais’ envolvendo Bondage, Disciplina, Sadismo, Masoquismo, que, apesar de não ter sexo explícito, recebeu classificação de 18 anos pelo tema e pelas sugestões/insinuações.
É uma produção de alma autoral, escrita, dirigida e protagonizada por Joanna Arnow, em sua estreia na direção de ficção. Com um humor sofisticado e inteligente, o filme, indicado a dois prêmios em Cannes (Golden Camera e SACD), é uma sucessão de dias na vida de uma novaiorquina de poucos amigos, que tem um emprego enfadonho e às vezes se diverte com relacionamentos fugazes de BDSM. Entre um sexo e outro com parceiros diferentes, ela tenta encontrar sentido naquela rotina interminável de trabalho e na forma como lida com sua família judaica esquisita.
Minimalista na forma e nos diálogos, é um filme cult curto, diferente, que desperta a curiosidade pela temática e no final das contas faz uma boa entrega – Joanna é ótima atriz e não tinha pessoa melhor para o papel!
Exibido ainda nos Festivais de Toronto e Nova York, concorreu ao Independent Spirit Awards e teve sessões na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2023. A produção executiva tem assinatura de Sean Baker, diretor de ‘Projeto Flórida’ (2017) e do ganhador da Palma de Ouro esse ano, ‘Anora’ (2024).
Filme está nos cinemas brasileiros, distribuído pela Synapse, selo de exibição da Sofa Dgtl, que desde 2023 traz para as salas de exibição fitas cult premiadas, como ‘A sindicalista’, ‘Blue Jean’, ‘20 dias em Mariupol’ - vencedora do Oscar de documentário, ‘Love lies bleeding - O amor sangra’ e ‘Às vezes quero sumir’.


Especial de cinema


Dois títulos relançados em edições especiais em DVD e Bluray, pela Classicline e pela Obras-primas do Cinema.


Warlock: O demônio

Boston, 1691. O bruxo Warlock (Julian Sands), acusado de compactuar com o diabo, é morto aos olhos da sociedade. Trezentos anos depois, ele reaparece em Los Angeles para terminar um antigo plano, de usurpar os poderes de Deus, colocando a humanidade em risco. Redferne (Richard E. Grant), um caçador de bruxas, volta do passado para deter Warlock.

Terror cultuado do final dos anos 80, “Warlock: O demônio” carrega certo humor e ares de filme de época, com figurinos que lembram Idade Média (o personagem-título retorna do passado, e ao chegar no tempo atual, há o contraste não só das roupas, mas do contexto social). Não é sanguinolento nem amedronta, tem um quê de scifi com aventura, cuja história traz traços de “Highlander – O guerreiro imortal”, dentro de um tema atraente, sobre feitiçaria e pacto com o diabo. Capricharam também nos efeitos especiais, que reúnem maquiagem pesada de criaturas e tecnologia pré-digital da saudosa década oitentista.
Nome lembrado pelos fãs de terror, o diretor Steve Miner, de “Sexta-feira 13 - partes 2 e 3” (1981 e 1982), “A casa do espanto” (1986), “Halloween H20” (1998) e “Pânico no lago” (1999), sem esquecer do sucesso “Eternamente jovem” (1992), realizou uma bacana fita cult querida pelo público do gênero, e deu tão certo que originou um jogo de videogame do Nintendo, além de duas continuações, inferiores, “Warlock 2: O armageddon” (1993, novamente com Julian Sands) e “Warlock 3: O fim da inocência” (1999 – este para home vídeo, com outro ator no papel do bruxo, Bruce Payne).



Falecido em 2023, o ator Julian Sands trabalha ao lado da atriz e cantora Lori Singer (cuja carreira não engrenou) e “briga” o tempo todo com o personagem do caçador de bruxas, feito por Richard E. Grant.
Roteiro de David Twohy, de “O fugitivo” (1993), e diretor da trilogia “Eclipse mortal/Riddick” (2000, 2004 e 2013, com Vin Diesel).
O filme acaba de ser lançado em DVD pela Obras-primas do Cinema numa caixa com a trilogia Warlock. São dois discos com a trilogia composta por “Warlock 2: O armageddon” (1993) e “Warlock 3: O fim da inocência” (1999) – vem luva, cards colecionáveis e mais de 1h de extras. Em 2020, a Obras-primas do Cinema já havia lançado o primeiro filme em DVD, no box “Sessão de terror Anos 80 – volume 3”, contendo, na caixa, “Pague para entrar, reze para sair” (1981), “Príncipe das sombras” (1987) e “A passagem” (1988).


* Reedição de resenha publicada em 17/10/2020

Warlock, o demônio (Warlock). EUA, 1989, 103 minutos. Terror/Aventura. Colorido. Dirigido por Steve Miner. Distribuição: Obras-primas do Cinema



Prova final

Estudantes de uma escola do segundo grau de uma pequena cidade de Ohio desconfiam que seus professores foram transformados em alienígenas. Eles se unem para entender o que está por trás do caso.

De Robert Rodriguez, diretor norte-americano de descendência mexicana responsável por muitos filmes que se tornaram cult inclusive no Brasil, como “El mariachi” (1992) e seu remake, “A balada do pistoleiro” (1995), “Um drink no inferno” (1996) e “Sin City: A cidade do pecado” (2005), “Prova final” (1998) é um de seus trabalhos mais diferentes e criativos. É um terror com humor negro e criaturas bizarras, sobre um grupo de estudantes que investiga o estranho comportamento de seus professores, ao desconfiar que os corpos deles foram tomados por aliens.
Na época do VHS, o filme fez certo sucesso entre os jovens e ajudou a firmar a carreira do diretor (esse foi o seu quarto longa-metragem). Rodado dentro de uma escola real em Lockhart, no Texas, com os verdadeiros habitantes da cidade, o filme marcou a estreia da panamenha de mãe brasileira Jordana Brewster, que em seguida entraria para o elenco de “Velozes e furiosos” e faria quase toda a franquia. Também foi a estreia do rapper Usher como ator, e vários atores estavam em início de carreira, como Josh Hartnett, Elijah Wood, Clea DuVall e Shawn Hatosy. Outros já eram conhecidos por filmes de terror e ação, como os professores tomados por aliens, Robert Patrick (o T-1000 de “O exterminador do futuro 2: O julgamento final”), Piper Laurie (nomeada a três Oscars, dentre as indicações como a mãe da personagem de “Carrie: A estranha”), Bebe Neuwirth (da série “Cheers”) e Daniel Von Bargen (de “O mestre das ilusões) – sem contar ainda as participações das lindíssimas Salma Hayek e Famke Janssen.
A trama tem ecos de “O enigma de outro mundo” (1982), e até o diretor presta uma homenagem ao filme de John Carpenter, na cena do teste das drogas. Traz fortes evidências de outros longas do gênero, como “Vampiros de almas” (1956), que é citado no filme, e do remake “Invasores de corpos” (1978), que falavam de uma forma alienígena que se apoderava do corpo dos humanos transformando-os em estranhos zumbis.





O roteiro, com cara de filme scifi dos anos 70/80, foi escrito em 1990, porém engavetado, e somente oito anos depois a produtora Miramax, dos irmãos Weinstein e naquela época recém-adquirida pela Disney, resolveu rodar o projeto – o roteirista Kevin Williamson, criador da franquia “Pânico”, assumiu e reescreveu o roteiro, com mais cenas slasher (de mortes sangrentas) e inserindo criaturas melequentas. Para os fãs, um prato cheio!
Saiu em 2022 em DVD pela Classicline, com luva, card e extras, e esse mês foi lançado em Bluray, com os mesmos extras, luva e cards com dois mini-cartazes originais do filme.

* Reedição de resenha publicada em 12/06/2022


Prova final (The faculty). EUA/México, 1998, 104 minutos. Terror/Comédia. Colorido. Dirigido por Robert Rodriguez. Distribuição: Classicline

domingo, 23 de junho de 2024

Estreias da semana - Nos cinemas


O estranho (2023)

 

A melhor estreia brasileira do mês é esse incrível drama com ar misterioso ‘O estranho’, escrito e dirigido por Flora Dias e Juruna Mallon. Indicado ao Teddy Bear no Festival de Berlim de 2023, o filme se passa no Aeroporto Internacional de Guarulhos, construído sob o território indígena, onde três milhões de pessoas cruzam todos os meses. Uma funcionária que trabalha na pista de pouso investiga o passado daquela área que abrigava indígenas, que contrapõe as ideias de civilização com a desapropriação forçada e genocídio do povo indígena.
Com tom memorialista, recorrendo a imagens de um passado perdido, o filme traz sempre o paradoxo do progresso do aeroporto e da colonização do território. Gravado no aeroporto de Guarulhos e nos arredores, tem participação dos atores Romulo Braga, Helena Albergaria e Larissa Siqueira. Produção da Lira Cinematográfica e Enquadramento Produções em coprodução com a francesa Pomme Hurlante Films e as brasileiras Filmes de Abril e Ipê Branco Filmes, com distribuição nos cinemas pela Embaúba Filmes.

 


 

Tudo o que você podia ser (2023)

 

Dirigido por Ricardo Alves Jr., de ‘Elon não acredita na morte’ (2016), essa cativante comédia dramática queer brasileira recebeu prêmios no Festival do Rio e no MixBrasil do ano passado. Rodada em Belo Horizonte, conta com atores do teatro de lá, cujos nomes reais são os dos personagens. No filme, quatro amigas se reúnem para a despedida de uma delas, que deixará BH. Durante um dia inteiro, vão rir, chorar, lembrar de momentos de afeto do passado.
O diretor costuma fazer filme-teatro, misturando real e ficcional (doc/ficção), e aqui segue a mesma linha, num bonito retrato sobre o valor da amizade, dos encontros e despedidas da vida, focando personagens do universo LGBTQIAPN+, que dão um show de interpretação.
O tema musical central, título do filme, é a canção “Tudo o que você podia ser”, do Clube da Esquina, regravado pela cantora baiana Coral.
Produzido pela EntreFilmes e Sancho&Punta, tem distribuição da ‘Sessão Vitrine Petrobras’ em 20 cidades brasileiras, por meio do Programa Petrobras Cultural.

 


 

Sin embargo, uma utopia (2024)

 

Estreou em algumas salas de cinemas de São Paulo esse documentário alternativo sobre a viagem do professor e maestro paulista Kleber Mazziero a Cuba, quando da comemoração de seus 50 anos de carreira. Em Havana, ele fala sobre a relação de Brasil e Cuba na música, suas andanças pela ilha e seu trabalho na formação de jovens pianistas cubanos. Tanto na abertura quanto em outros momentos do filme, Mazziero faz um apelo para o fim do embargo dos Estados Unidos, que paralisa Cuba desde os anos 60 com o bloqueio econômico e é um risco para a população de 11 milhões de habitantes. O filme celebra ainda os 110 anos do Museu Nacional de Belas Artes de Cuba, um centro histórico e de formação da identidade cultural do país. Mazziero é produtor do filme, e sua esposa, Fabiana Parra, a diretora. Doc produzido por Kaza Véia e Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos - ICAIC.




Especial de Cinema


Festival In-Edit Brasil termina hoje com diversos filmes em exibição

A 16ª edição do ‘In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical’ termina hoje. Gratuito e aberto ao público, desde o dia 12 de junho traz mais de 60 filmes para o público, todos inéditos no circuito comercial. A edição brasileira ocorre em São Paulo, em 10 salas da capital paulista, e em breve haverá itinerância por cidades brasileiras. São longas e curtas-metragens de vários países, e parte da programação do In-Edit Brasil está disponível online nas plataformas Sesc Digital, Itaú Cultural Play e SPcine Play.
Confira abaixo mais filmes que assisti no festival e recomendo – todos estão online nas plataformas de streaming parceiras do festival até às 23h59 de hoje, dia 23.

 

 

Mandinga (Brasil, 2024, 102 minutos, de Egler Cordeiro)

 

Documentário gravado entre os anos de 2014 e 2018, somente agora lançado, que conta a história por trás de ‘Mandinga’, primeiro álbum do guitarrista de blues André Christovam, produzido em 1989. ‘Mandinga’ foi um disco histórico e pioneiro, um exemplar genuíno de blues brasileiro e um dos que mais vendeu na história nesse gênero. Christovam fala sobre sua carreira e sobre o disco em especial, também toca e canta na frente das câmeras. Amigos músicos de Christovam, como Kid Vinil e Otávio Rocha, produtores e parceiros relembram esse disco memorável e o impacto dele no público da época. Disponível online e gratuito na plataforma SPcine Play até dia 23/06.

 


 

Germano Mathias – O catedrático do samba (Brasil, 2023, 70 minutos, de Cauê Angeli e Hernani de Oliveira Ramos)

 

Um dos melhores docs da edição desse ano do IN-Edit Brasil, o filme resgata a longa trajetória do cantor e compositor de samba de São Paulo Germano Mathias (1934-2023), que escreveu dezenas de músicas que foram cantadas por grandes nomes, como Gilberto Gil (que dá depoimento no filme). Mathias fala de sua vida, da infância até a estreia na música, aparece em entrevistas em rádios e TV (são entrevistas de acervo e outras captadas no momento de gravação do doc), relembra São Paulo nas décadas de 50 e 60 e traz a família para próximo do filme. Ele morreu durante as gravações, o que torna o longa-metragem uma homenagem póstuma a esse grande sambista que deixou importante legado para a música nacional. São dele sambas como ‘Minha nega na janela’, ‘Zé da Pinga’ e ‘Senhor delegado’ (em parceria com Gilberto Gil). Disponível online e gratuito na plataforma SPcine Play até dia 23/06.

 


 

Viamão (Brasil, 2023, 78 minutos, de Sérgio Pererê, Leandro Miranda e Gibran)

 

Nesse documentário independente, acompanhamos a viagem do cantor, compositor e multi-instrumentista mineiro Sérgio Pererê para Argentina e Uruguai, em 2016, quando teve a ideia de se reencontrar com o grupo de percussão argentino ‘No Chilla’ para um trabalho. Durante meses, o músico e o grupo trocaram experiências, dividiram o palco, criaram composições inéditas e lançaram, naquele mesmo ano, um álbum de intensa sonoridade, ‘Viamão’. O filme traça o reencontro do músico e do grupo, discutindo ainda sobre o processo de invisibilização da comunidade afro na Argentina. Disponível online e gratuito na plataforma SPcine Play até dia 23/06.

 


 

No rastro do pé de bode (Brasil, 2023, 61 minutos, de Marcelo Rabelo)

 

Documentário muito bacana que traz histórias sobre um dos instrumentos mais notáveis do forró, a sanfona de oito baixos, e como ela foi sendo utilizada na música nordestina. Rato Branco, um músico das antigas, anda por cidades do sertão da Bahia atrás de instrumentistas que ainda tocam o ‘oito baixos’. Ele encontra senhores com mais de 60 anos que preservam a tradição dessa sanfona, e juntos contam fatos engraçados e inusitados sobre ela e sobre a música em si. Os entrevistados têm uma energia incrível tornando o documentário prazeroso de assistir – bem curtinho, o filme tem apenas 61 minutos de duração. Disponível online e gratuito na plataforma Itaú Cultural Play até dia 23/06.

 


sexta-feira, 21 de junho de 2024

Resenhas especiais


O barato de Iacanga

Documentário sobre o histórico ‘Festival de Águas Claras’, ocorrido nos anos 70 e 80, que ficou popularmente conhecido como o ‘Woodstock Brasileiro’.

Formidável documentário para os amantes do rock brasileiro e de MPB, vencedor do prêmio do júri no Festival In-Edit e exibido no ‘Festival É Tudo Verdade’ de 2019. O filme resgata a trajetória de um jovem estudante de engenharia de 22 anos, que, em 1975, teve a ideia maluca de criar um megafestival de música no interior de São Paulo, nos moldes da Woodstock. O local: a fazenda de sua família, chamada de Santa Virginia, na cidadezinha de Iacanga, a 50km de Bauru e a 380km de São Paulo. Antonio Checchin Junior, o Leivinha, foi esse rapaz, idealizador de um projeto ousado, em plena Ditadura Militar, com inspiração no movimento Hippie, na liberdade do corpo e das drogas (na época as drogas era a maconha), contra o conservadorismo e contestando os atos autoritários do governo militar. A fazenda de Leivinha virou palco para o lendário festival ao ar livre, chamado de ‘Águas Claras’, e por nove anos, houve lá quatro edições do evento, reunindo um numeroso e diversificado público, com apresentação de artistas de renome.
Ao longo do documentário, acompanhamos os bastidores da realização do festival, da parte técnica trabalhando e operando som, a chegada dos músicos, a mobilização da cidade e as intercorrências, como chuvas fortes. São entrevistas da época, de arquivo, com os produtores, músicos e da população de Iacanga, bem como depoimentos atuais, de Leivinha e de artistas que se apresentaram, como Hermeto Paschoal e Paulinho Boca de Cantor. Num dos momentos do doc, moradores contam que o festival chamou tanto público que Iacanga, na época com menos de cinco mil habitantes, ficou desabastecida de remédios e alimentos!
A primeira edição do festival ocorreu por três dias, em janeiro de 1975 – chegou a ser autuado pela Polícia Federal, apontado como um evento subversivo com hippies, drogas e devassidão, segundo eles, ‘atentando contra a moral e os bons costumes’, como consta no boletim de ocorrência – a cópia do B.O. sai no livreto que vem junto ao DVD do filme lançado pela Versátil Home Video. Juntou cerca de 20 mil pessoas, muito acima do esperado.
A segunda edição – que é mais focada no filme, ocorreu seis anos depois, entre os dias 4 e 6 de setembro de 1981. Esse foi televisionado, com mais publicidade, subiram ao palco Raul Seixas, Sandra de Sá, Luiz Gonzaga, Hermeto Paschoal, Gilberto Gil, Alceu Valença e outros. Conseguiram até trazer João Gilberto, que evitava shows – os produtores contam que foi difícil levá-lo, e Gilberto considerou este o melhor show da sua vida. A segunda edição contou com 75 mil pessoas na plateia.
A terceira edição, em 1983, trouxe cantores como Fagner, Sivuca, Paulinho da Viola e Wanderléa, porém interrompido por uma chuva incessante, tendo de ser cancelados shows de Luiz Melodia e Clementina de Jesus, sem contar brigas de público e problemas técnicos.
A quarta e última edição veio durante o carnaval de 1984, com menor público, poucos recursos e menos artistas presentes.





O documentário musical resgata esse momento único e pioneiro de nossa cultura, um ‘hippismo à moda brasileira’, antes mesmo de existir o Rock in Rio. Nostálgico e bem editado, nos leva a um passeio imersivo na arte musical do Brasil em um período complexo, de transformações.
Saiu em DVD pela Versátil em parceria com a bigBonsai; vem com luva, em disco duplo contendo o filme e cinco horas de vídeos extras, além de um pôster com o cartaz original do festival, três cards e um livreto de 40 páginas. O filme também está disponível na Netflix e no canal Curta!

O barato de Iacanga (Idem). Brasil, 2019, 93 minutos. Documentário. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Thiago Mattar. Distribuição: Versátil Home Video


Almas gêmeas

A adolescente Juliet (Kate Winslet) muda-se com os pais da Inglaterra para a costa da Nova Zelândia. Na nova escola, conhece outra adolescente, Pauline (Melanie Lynskey), e ambas têm uma afinidade fora do normal. Elas desenvolvem uma forte amizade; juntas criam um mundo próprio, afastando-se da realidade. Quando a mãe de Pauline a flagra beijando Juliet, o mundo desaba sobre as duas, que serão obrigadas a se afastar.

Filme marcante dos anos 90, apontado por críticos do mundo todo como um dos mais importantes daquela década. Lançou Kate Winslet no cinema, que logo viraria estrela de Hollywood com ‘Titanic’ (1997), e teve como inspiração um fato verídico chocante que mexeu com a opinião pública da Nova Zelândia. O ‘Caso Pauline Parker e Juliet Hulme’ envolveu uma amizade que ultrapassou os limites e virou uma obsessão. O caso é datado de 1954, ocorreu na costa leste da ilha sul de Nova Zelandia, em Christchurch, uma cidade de médio porte, de estilo inglês. Na época Pauline tinha 16 e Juliet, 15 anos. Juliet é inglesa, vem com os pais para a cidade, tem comportamento forte e transgressor, desafiando professores, amigos e a família. Já Pauline é passiva, aceita tudo, vive bem com os pais. Quando a amizade das duas se fortalece, tudo poderá acontecer. Elas acabam criando um mundo paralelo, fogem de casa para viver aventuras pelos bosques, conversam com cavaleiros de pedra – um deles é o ator Orson Welles, de quem são fãs, elas inventam lugares com flores, uma delas adora as músicas de Mario Lanza e até o ‘veem’ cantando em sua frente. Acabam tendo um affair e são flagradas se beijando, causando um alvoroço na família – a mãe de Pauline chega a levar a menina à força a um psiquiatra, que detecta nela o ‘homossexualismo’ – palavra empregada erroneamente na época, considerado uma doença. Por isso, os pais de ambas resolvem afastar as duas – cuidado, spoiler - e como não havia mais a possiblidade de se encontrarem, bolam um assassinato terrível para fugirem e assim viverem juntas. O crime cruel ocorreu em 22 de junho de 1954, as duas mataram a mãe de Pauline com mais de quarenta tijoladas na cabeça.
O filme, um drama que vai mudando o tom para suspense no decorrer da história, tem enorme veracidade, pois é uma adaptação dos diários das garotas. Rodado na Nova Zelândia, país natal do diretor Peter Jackson, antes de se tornar conhecido pelas trilogias ‘O senhor dos anéis’ (2001, 2002 e 2003) e ‘O hobbit’ (2012, 2013 e 2014) – nos anos 80 e início dos 90 ele fez filmes de terror, terrir e scifi em seu país, como ‘Trash – Náusea total’ (1987) e ‘Fome animal’ (1992).




O filme venceu o Leão de Prata no Festival de Veneza e foi indicado ao Oscar de melhor roteiro – escrito por Jackson e Fran Walsh, casada com ele desde os anos 80 – os dois trabalham juntos, inclusive escreveram ‘O senhor dos anéis’.
Kate Winslet, nascida na Inglaterra, tinha na época 18 anos, foi seu primeiro longa, depois de fazer séries; também foi a estreia de Melanie Lynskey, atriz neozelandesa, na época com 16 anos, e que dá um show de interpretação – as duas são ótimas.
Originalmente tem 99 minutos de duração, mas foi lançado recentemente em DVD pela Classicline na versão intermediária, de 102 minutos – há uma estendida do diretor, de 108 minutos, que no Brasil não encontramos. Muito tempo atrás saiu em DVD numa edição de banca, nos primórdios do DVD, no início de 2000.

Almas gêmeas (Heavenly creatures). Nova Zelândia/Alemanha, 1994, 102 minutos. Drama/Suspense. Colorido/Preto-e-branco. Dirigido por Peter Jackson. Distribuição: Classicline



Astrágalo

Presa por roubo, Albertine (Leïla Bekhti) pula os muros da prisão de Douellens, na França, para fugir. Ela cai, quebra um osso do pé chamado ‘astrágalo’, e se rasteja até a estrada, onde é socorrida por um desconhecido, o motorista Julien (Reda Kateb). Ele a leva para a casa de um amigo em Paris, e juntos iniciam um romance. Até que Julien é preso, e Albertine passa a ser procurada pela polícia.

‘Astrágalo’ é a segunda adaptação do romance autobiográfico ‘O astrágalo’, de Albertine Sarrazin (1937-1967), autora nascida na Argélia antes da independência, quando o país norte-africano era de domínio da França. Albertine teve uma vida trágica – com dois anos foi largada na rua pela mãe, adotada em seguida por um médico do Exército; foi estuprada aos 10 anos por um familiar, depois entrou para a prostituição. Presa aos 16 anos por roubo a mão armada a uma loja de roupas, recebeu sentença de sete anos; na cadeia escreveu poesia e romances. No reformatório de Doullens, fugiu, machucou-se e foi socorrida por um motorista de caminhão, Julien, mantendo, ambos, uma vida de crimes. Os dois foram presos diversas vezes, chegaram a se casar na cadeia, até que tiveram de ser afastados um do outro. Albertine trabalhou um rápido período como jornalista, teve relacionamento amoroso com uma amiga e publicou seu primeiro romance, ‘Astrágalo’, em 1964, que virou bestseller, obra que retrata sua vida. O livro originou uma primeira versão, de sucesso, em 1968, dirigido por Guy Casaril, com Horst Buchholz e Marlène Jobert (também argelina e mãe da atriz Eva Green) nos papeis principais. Albertine morreu aos 29 anos após complicações de uma cirurgia às pressas.
Parte dessa trajetória da controversa Albertine é relatada no filme – o longa-metragem já abre com Albertine, à noite, escapando do reformatório feminino de Doullens, onde cai, fere o pé – ela quebra o osso chamado ‘astrágalo’, e se rasteja até a estrada onde será socorrida pelo futuro amor de sua vida, um motorista que também é criminoso. Sem focar nos crimes que cometeram ao longo da vida, é mais um drama romântico de um casal marcado pelo passado, que tem de viver fugindo de lá pra cá. Com muitos closes e enquadramentos íntimos, tem uma belíssima fotografia PB, uma clara homenagem a Nouvelle Vague – o clima de tragédia, com aspectos de cinema noir, é uma constante no filme.
O elenco é bom, com Leïla Bekhti interpretando a protagonista Albertine - atriz de ‘O profeta’ (2009), onde conheceria o futuro marido, o ator Tahar Rahim, com quem é casada, e Reda Kateb como Julien – o ator também fez ‘O profeta’ e aparece hoje em muitos filmes franceses e americanos.




O roteiro adaptado do livro é de Brigitte Sy, uma atriz veterana que também dirige o filme – Brigitte dirigiu apenas dois longas com esse e atuou em mais de 35 longas, como ‘A guerra está declarada’ (2011) e ‘Vida selvagem’ (2014). Disponível em DVD pela Imovision, também pode ser assistido na Apple TV e na plataforma em streaming Reserva Imovision, uma parceria do cinema Reserva Cultural com a Imovision, que reúne todo o catálogo da distribuidora.

Astrágalo (L'astragale). França, 2015, 96 minutos. Drama/Romance. Preto-e-branco. Dirigido por Brigitte Sy. Distribuição: Imovision

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Especial de Cinema


Festival In-Edit Brasil segue com programação gratuita até dia 23/06

O ‘In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical’ está em sua 16ª edição, com uma programação gratuita e aberta ao público, com 60 filmes em exibição, todos inéditos no circuito comercial. O festival começou em São Paulo no dia 12 e segue até 23 de junho, e após essa data haverá itinerância em outras cidades brasileiras. São longas e curtas-metragens de vários países, exibidos em 10 salas da capital paulista, dentre elas CineSesc, Cine Bijou, SPcine Olido e Cinemateca Brasileira. A programação também conta com shows, exposições, feira de vinil e livros, encontros e bate-papos.
Parte da programação do In-Edit Brasil está disponível online e gratuita nas plataformas Sesc Digital, Itaú Cultural Play e SPcine Play.
O In-Edit Brasil tem patrocínios como Itaú, Prefeitura de São Paulo, SPcine, Colombo Agroindústria e Caravelas. Tem parceria com dezenas de institutos culturais, como Goethe Institut e Cinemateca Brasileira. É uma realização do Ministério da Cultura, In Brasil Cultural, Sesc e Governo do Estado de São Paulo. Paralelamente ocorrem edições do In-Edit em cinco países - Espanha, Chile, Países Baixos, Grécia e México.
Confira abaixo filmes que assisti no festival e recomendo.

 

 

Eu sou o samba, mas pode me chamar de Zé Kéti (Brasil, 2023, 88 minutos, de Luiz Guimarães de Castro)

 

Músicos, familiares, amigos e fãs lembram vida e obra de Zé Keti (1921-1999), compositor que retratou na música a vida nos morros cariocas. Popularizou-se com canções como ‘A voz do morro’, ‘Acender as velas’, ‘Opinião,’ ‘Diz que fui por aí’ e ‘Máscara negra’. Kéti aparece em reportagens e shows do passado enquanto rodas de samba e cantores da atualidade aparecem no palco cantando suas canções. Keti, e no doc mostra, compôs trilhas para cinema, como ‘Rio zona norte’ e ‘A grande cidade’, participando como ator desses e de outros filmes. É bonito de ver e de ouvir. Um documentário encantador e para mim o melhor até agora do In-Edit!

Disponível online e gratuito na plataforma Itaú Cultural Play até dia 23/06.

 


 

O homem crocodilo (Brasil, 2024, 84 minutos, de Rodrigo Grota)

 

Documentário experimental e inusitado sobre um dos grandes expoentes da vanguarda paulistana, o músico, compositor e ator Arrigo Barnabé. O artista aparece em tipos diferentes de enquadramento, fala pouco, há uma mistura de narrações antigas dele com trechos de sua música, e também na tela correm imagens multiformes. O foco do filme-experimento é trazer os anos em que Barnabé residiu em Londrina/PR antes de se mudar para São Paulo. O título do doc é referência ao álbum mais lembrado dele, que dá nome à música, Clara Crocodilo, lançado em 1980. Disponível online e gratuito na plataforma Sesc Digital até dia 23/06.

 


 

El arte de perder (Chile/Alemanha, 2022, 71 minutos, de Sebastian Saam)

 

O músico e produtor chileno Andrés Godoy conta sua vida para as câmeras, que o acompanha em sua rotina e em seus shows. O cantor e compositor perdeu o braço direito em um acidente quando tinha 14 anos, e mesmo assim tornou-se um dos grandes tocadores de violão, criando canções que atravessam diversos gêneros, como rock e folk-music. No filme, bem produzido por sinal, ele mostra ainda como desenvolveu uma técnica impressionante de tocar violão e outros instrumentos de corda, o ‘tatap’. O filme venceu o In-Edit Chile 2022 e está disponível online e gratuito na plataforma Sesc Digital até dia 23/06.

 


 

Pagano (Brasil, 2024, 72 minutos, de Carlos Nascimbeni)

 

Doc independente sobre um dos mais respeitados e influentes pianistas eruditos do Brasil, Caio Pagano, que reside há tempos nos Estados Unidos e é professor da Universidade do Estado do Arizona. O filme acompanha sua vinda ao Brasil depois de anos, quando tocou no Teatro Cultura Artística em 2019 – na ocasião, foi entregue a primeira parte da reconstrução do teatro, parcialmente destruído por um incêndio em 2008. Pagano, em seu piano conta sobre sua trajetória e demonstra o talento tocando as composições finais de Liszt, Beethoven e Camargo Guarnieri. Disponível online e gratuito na plataforma Sesc Digital até dia 23/06.

 


 

Black Future – Eu sou o Rio (Brasil, 2023, 77 minutos, de Paulo Severo)

 

Filme sobre o álbum de estreia – e o único - da banda carioca Black Future, chamado ‘Eu sou o Rio’. Parte das músicas do disco tocou nas principais rádios no ano do lançamento, 1988, teve boa repercussão na crítica, mas logo depois a banda se desintegrou e caiu no esquecimento. O filme reúne uma série de entrevistas feitas quando dos 20 anos de lançamento do disco, com os ex-integrantes e músicos amigos. Um dos grandes filmes da edição do In-Edit Brasil 2024. Disponível online e gratuito na plataforma Sesc Digital até dia 23/06.



Dusty & Stones (EUA, 2022, 83 minutos, de Jesse Rudoy)

 

A viagem de dois jovens músicos chamados Dusty e Stones, de Essuatíni, na África, até o Texas, nos EUA, para participar de um concurso internacional de música country, é o foco desse emocionante documentário norte-americano. Na terra da folk music, a dupla viverá um sonho que mantinha desde a infância. Premiado nos festivais de Atlanta, Florida, Nashville e RiverRun, o filme está disponível online e gratuito na plataforma Sesc Digital até o dia 23/06.

 


 

Funk favela (Brasil, 2024, 71 minutos, de Kenya Zanatta)

 

Funk, favela, consciência de classe. Esses três temas se entrelaçam nesse formidável e bem construído documentário brasileiro, que reúne uma série de depoimentos de jovens e promissores artistas do funk paulistano para mostrar a música que é feita na periferia. O filme tece um pouco da história do funk em São Paulo e a construção do gênero ao longo do tempo, e discute ainda identidade cultural, preconceito e empoderamento feminino – já que muitas mulheres hoje cantam e compõem funk. Disponível online e gratuito na plataforma Itaú Cultural Play até dia 23/06.




 

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Especial de Cinema


‘Fuga do século 23’ - uma sociedade de extremos

Como será a vida no século XXIII? Haverá paz mundial ou guerras sem fim? Terá moradia suficiente para a população? E os alimentos, estarão disponíveis quando todos precisarem? Em ‘Fuga do século 23’ (1976), as respostas são apontadas, segundo a visão do diretor Michael Anderson a partir do livro futurista que inspirou a obra, escrito pelos norte-americanos William F. Nolan e George Clayton Johnson - publicado em 1967 e que virou bestseller.
Conforme o filme, no século XXIII a sociedade vive em equilíbrio. A população é feliz, não há guerras ou doenças, e tudo é provido pelos computadores inteligentes, desde as refeições até o lazer. Essa sociedade hedonista, que hipervaloriza o prazer, elimina as dores, as preocupações, os medos. Nada falta para as pessoas. As cidades são protegidas por redomas de vidro, os estádios com grandes arquibancadas preenchem a paisagem urbana, divididos por prédios altos envidraçados e espelhos d’agua. Túneis cortam a cidade de fora a fora, por onde transitam em alta velocidade veículos modernos.
Na abertura do filme, os letreiros trazem a informação de que houve uma terrível guerra, e os sobreviventes residem nessa cidade fechada em um domo, “afastada e esquecida do mundo exterior”. Porém, nesse mundo ecologicamente equilibrado, ninguém envelhece, pois a vida deve terminar aos 30 anos. Quem completa tal idade, participa de um ritual selvagem chamado ‘Renovação’, em que o corpo é destruído numa máquina denominada ‘Carrossel’, e, de acordo com as leis da sociedade, o indivíduo retorna no futuro – uma espécie de reencarnação.
Um dos moradores ilustres desse lugar é Logan 5 (papel de Michael York, de ‘Cabaret’) – o 5 depois do nome dos personagens é a geração de cada um, ou seja, Logan é o 5º representante de sua geração. Ele é um ‘Sandman’, um caçador de gente, que captura e mata aquele ou aquela que ousar escapar daquela sociedade controlada. Ele forma um par ideal com Francis 7 (Richard Jordan, de ‘A caçada ao outubro vermelho’); ambos são Sandmen, usam uniformes pretos com marcas cinzas, portam uma arma letal, vigiando a população. Até que um dia, depois de capturar um fugitivo após um ritual de Renovação, põe-se a questionar sua função e se realmente as pessoas eram renovadas no Carrossel, já que sua vida está prestes a acabar – as pessoas usam um ‘marcador de vida’ nas mãos, uma espécie de cristal que muda de cor conforme o avanço das idades, e a cor vermelha significa o término. Ao filosofar com uma amiga/amante, Jessica 6 (Jenny Agutter, de ‘A longa caminhada’), ele é provocado com discussões existenciais. Concluem que nunca viram ninguém voltar do Carrossel, então as pessoas morriam e acabou. Logan descobre uma brecha no sistema de vigilância, nem todos os habitantes são computados, e há possibilidades reais de fuga. Ao se passar por um foragido, recebe a missão de escapar de lá, rumo ao ‘Santuário’, local mítico onde, aparentemente, as pessoas vivem mais livres, há imunidade e tolerância e ninguém morre. Logan não imaginava existir um lugar assim – para ele, o mundo era apenas sob aquele domo rosa. Sua missão é destruir o Santuário. Ele aceita o desafio, junta-se a Jessica 6 e parte para a nova jornada de sua vida.
Essa superprodução norte-americana, originalmente da MGM, contou com orçamento caro para os padrões de filmes da época – U$ 9 milhões, marcando o cinema scifi, com sua história intrigante e fotografia com cores fortíssimas, que remetiam ao Psicodelismo – as cores eram de uma Metrocolor, processo inovador feito pelos estúdios da MGM. Indicado ao Oscar de melhor fotografia e direção de arte, recebeu da Academia um prêmio técnico especial, de efeitos especiais, em 1977.




O arranjo da fotografia ultracolorida, assinada por Ernest Laszlo, de ‘Aeroporto’, com a direção de arte futurista, misturando formas inusitadas de vidro, metal e gelo, da dupla Dale Hennesy e Robert De Vestel, de ‘O jovem Frankenstein’, realçam o poder visual dessa obra distópica fundamental para o cinema setentista. Um filme longe do entretenimento por si só, e sim repleto de críticas sociais, que ajudariam a compreender o comportamento social daquele período em que o filme foi feito, 1976, e os anos posteriores, década de 80, 90 e a chegada ao século XXI.
A população que vive sob a redoma veste-se de maneira homogênea, com túnicas vermelhas, rosas e verdes, enquanto passeiam por aí, felizes, por ambientes parecidos com grandes shopping centers. Sim, seria uma crítica ao comportamento de grupo e imposição do padrão de consumo e da moda.
Outra crítica perceptível é a da ‘sociedade do espetáculo’, ideia pensada pelo francês Guy Debord nos anos 60, quando os indivíduos se reúnem para celebrar o evento da ‘Renovação’, no Carrossel, em que as pessoas são explodidas ao vivo. É um ‘panis et circenses’ high tech - as pessoas se distribuem pela arquibancada circular, e dentro de um enorme cristal vermelho em formato de uma rosa, os que completaram 30 anos ficam lado a lado, até que de cima vem uma luz, faz o carrossel girar, e eles são levitados para o topo; a plateia histérica comemora, aplaudindo e gritando. Lá do alto, para se renovar, as pessoas explodem – quando acaba o ritual, todos voltam para casa, até que um novo ritual seja organizado. É tanto uma referência às arenas do Império Romano quanto da atual espetacularização midiática de acontecimentos.
O filme traz uma visão idílica e distópica, nos moldes malthusianos, de um futuro aparentemente tranquilo, onde não há tristeza nem dor, tampouco o envelhecimento e o medo da morte. É um mundo de prazer absoluto, um século XXIII tecnológico e de pura comodidade. Mas por trás disso há um processo aterrador – as pessoas são forçadas a morrer jovens, com 30 anos – no livro de William F. Nolan e George Clayton Johnson, a idade é 21 anos. Morrer significa manter não só o equilíbrio populacional como o da distribuição eficaz de alimentos. São ideias recorrentes na literatura e no cinema sobre futuros distópicos, segundo Bertucci & Vieira (2022), já que as distopias são o oposto radical da utopia. O termo ‘distopia’, segundo os autores, surgiu, pela primeira vez, num discurso do filósofo e economista inglês John Stuart Mill no parlamento britânico em 1868, e trata de um “lugar de extrema opressão, seja pelo controle excessivo ou pelo total descontrole social, onde recorrentemente reinam o autoritarismo e a violência física ou simbólica” (p.77).
Também Gomes, Cardoso & Pedro (2020) apontam que as distopias expressam visões negativas do mundo social, e elas “têm como um de seus temas centrais a dinâmica do poder e do autoritarismo. Compartilham também uma forte desconfiança diante do emprego instrumental da ciência e da tecnologia, e um fascínio com a paranoia, o aprisionamento e a alienação social do indivíduo” (p.6-7).
No filme ‘Fuga do século 23’ - o título pode aparecer como ‘Fuga no século 23’, a sociedade é manipulada, vive sob vigilância, não tem liberdades plenas e há uma evidente alienação. “As distopias problematizam os danos prováveis caso determinadas tendências do presente vençam. É por isso que elas enfatizam os processos de indiferenciação subjetiva, massificação cultural, vigilância total dos indivíduos, controle da subjetividade a partir de dispositivos de saber [...] Elas contêm um pessimismo ativo [...] são a denúncia dos efeitos de poder ligados às formas discursivas”, de acordo com Hilário (2013).
Questões como controle populacional, controle de natalidade, totalitarismo, opressão, narcose, ostentação ao belo, ao perfeito e ao saudável, e sociedade vigiada, que circulam em ‘Fuga do século 23’, são teores presentes - e que serviram de críticas sociais contundentes - em obras icônicas do século XX sobre distopias. Está em George Orwell (em ‘1984’), Aldous Huxley (em ‘Admirável mundo novo’), Philip K. Dick (em ‘Androides sonham com ovelhas elétricas’, que depois se chamaria ‘Blade runner’), Ray Bradbury (em ‘Fahrenheit 451’), Margaret Atwood (em ‘O conto da aia’), Anthony Burgess (em ‘Laranja mecânica’), Arthur C. Clarke (em ‘O fim da infância’), Evgéni Zamiátin (em ‘Nós’), Willian Gibson (em ‘Neuromancer) e Stanislaw Lem (em ‘O incrível congresso de Futurologia’) – e quase todos esses viraram filmes ou séries.



‘Fuga do século 23’ não era apenas ficção. Vislumbravam-se muitas coisas na sociedade daquela época, e que estariam presentes anos depois, como a tecnologia para todos os processos. Numa das cenas há o reconhecimento facial de um morto com um equipamento eletrônico portátil, e numa outra, uma espécie de biometria com a palma da mão – hoje, ambas as tecnologias são amplamente utilizadas. Em outra cena, uma espécie de TV de LED gigante toma conta da sala de Logan, controlada por controle remoto, que torna tudo interativo – lá ele consegue trazer uma mulher da TV para sua casa. As câmeras de vigilância invadem privacidade e levam a informação até os painéis numa central, como se fosse um Big Brother. Os procedimentos médicos e estéticos indolores e por robôs e máquinas também são mostrados numa cena de muita ação. Tudo isso, de uma certa maneira, já existe nos dias de hoje.
A sociedade de ‘Fuga do século 23’ é limitada, castradora, vigilante e punitiva, onde não se questiona nada, nem métodos nem as informações que são passadas. É uma sociedade alienada – a cena em que Logan descobre a verdade por trás da Renovação, de que aquilo não passava de uma fraude, mostra o sistema de fake news que permeava aquele lugar, para controlar, colocar medo e adestrar os indivíduos.

A chegada ao Santuário – cuidado, spoiler alert!

O bloco da metade ao final do filme propicia um deslumbramento especial a quem assiste. Depois da fuga de Logan e Jessica, após cruzarem uma passagem de gelo, enfrentarem um robô mal-intencionado que congela os fugitivos, e se depararem com a natureza, do lado de fora da redoma, em busca do Santuário, percebem que lá existe uma civilização antiga e perdida, uma enorme floresta com corredeiras e cachoeiras, e não há sinal de vida. Após a dupla desbravar a mata e vasculhar um panteão coberto por folhagens, fica perplexa com uma estátua central, não reconhecendo quem é a pessoa. A poucos quilômetros, avistam um enorme obelisco e um prédio alto com uma cúpula quebrada. Ali só um morador vive, um senhor, apelidado de ‘Old man’ (participação de Peter Ustinov, de ‘Spartacus’), de memória atrapalhada e cercado por gatos. O local nada mais é do que a capital norte-americana, Washington D.C. O Santuário é o Capitólio, o centro legislativo dos EUA, e o obelisco, o Monumento a Washington, com seus 170 metros de altura, todo abandonado, pois há dois séculos a população sucumbiu. A estátua anteriormente vista era a de Abraham Lincoln, e o lugar visitado por Logan e Jessica, o Lincoln Memorial. Vendo aquele senhor de idade e as ruínas por onde passaram, Logan entende o sentido do que é envelhecer, aquilo que era tirado deles quando estavam na redoma de vidro. Nessa sequência, Old man, cercado pelos gatos, recita poemas de T.S. Elliot, da coleção ‘Os gatos’ – ‘Old possum's book of practical cats’ – um dos animais dele se chama Jellicle, e Old Man seria uma personificação de Old Deuteronomy, personagem de muita idade e quase transcendental, tanto dos textos de T.S. Elliot quanto do musical inspirado pelo autor, ‘Cats’.
O santuário nada mais seria que o último vestígio da civilização humana, com apenas um morador que vive até chegar o seu fim natural – não só aqui, mas em todo o filme reside uma crítica ao controle de natalidade, à liberdade de escolha e à pena de morte. Vale reforçar, com outras palavras, que na sociedade da redoma de vidro a morte prematura e forçada faz parte das leis, ou seja, eram autorizados assassinatos em massa.



Notas sobre a produção e curiosidades

- William F. Nolan, um dos autores do livro ‘Logan’s run’, também escreveu contos e roteiros para cinema de terror, como a adaptação do livro para o cinema de ‘A mansão macabra’ (1976) e segmentos dos telefilmes ‘Trilogia do terror’ (1975) e ‘Trilogia do terror II’ (1996). O outro autor do romance ‘Logan’s run’, George Clayton Johnson, ao lado de Jack Golden Russell, criou a história de ‘Onze homens e um segredo’, que virou filme em 1960 e depois inspirou o remake e as continuações na década de 2000 – ele ainda escreveu episódios das séries ‘Além da imaginação’, ‘Jornada nas estrelas’ e ‘Kung fu’, e um dos segmentos do filme ‘No limite da realidade’ (1983).

- O roteiro do filme ‘Fuga do século 23’ é de David Zelag Goodman, que colaborou como roteirista em ‘Sob o domínio do medo’ (1971) e ‘Os olhos de Laura Mars’ (1978), ao lado de outros roteiristas.

- A trilha sonora é de Jerry Goldsmith, de ‘A profecia’ (1976), ‘Meninos do Brasil’ (1978) e outros 200 filmes.

- A direção é do cineasta londrino Michael Anderson, que havia feito a primeira versão do filme futurista ‘1984’, em 1956, baseado no clássico de George Orwell; depois dirigiu fitas importantes como ‘A volta ao mundo em 80 dias’ (1956), ganhadora do Oscar de melhor filme, e ‘As sandálias do pescador’ (1968).

- O filme originou nos dois anos seguintes a série norte-americana ‘Fuga das estrelas’ (1977–1978), que contou com apenas uma temporada com 14 episódios, protagonizada por Gregory Harrison.



Referências

BERTUCCI, Jonas O.; VIEIRA, Nathan. A procura por distopias no século XXI: uma análise do ranking de obras mais populares do portal Amazon Brasil. Abusões, n. 17, ano 08. 2022. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/abusoes/article/view/60145. Acesso em: jan. 2024

GOMES, Anderson; CARDOSO, André; Sasse, PEDRO. A distopia e o gótico. Abusões, n. 12 v. 12, ano 06. 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/abusoes/article/view/51656/34135. Acesso em: jan. 2024

HILÁRIO, Leomir C. Teoria crítica e literatura – a distopia como ferramenta de análise radical da modernidade. Anu. Lit., Florianópolis, v.18, n. 2, p. 201-215, 2013. Disponível em http://dx.doi.org/10.5007/2175-7917.2013v18n2p201. Acesso em: jan. 2024

* Resenha escrita especialmente para o livro "Clássicos Sci-fi - Pérolas da coleção" - foto acima, lançado pela Versátil Home Video em maio desse ano. Livro disponível para venda no site da Versátil, diretamente no link https://www.versatilhv.com.br/.../livro-classicos.../5558582