A meia-irmã feia
Chega aos cinemas pela Mares
e a Alpha Filmes uma das fitas de terror mais impressionantes do ano, para
público de estômago forte. O estiloso ‘A meia-irmã feia’ revisita o conto folclórico
sombrio de Cinderela dos irmãos Grimm – que não tem nada de belo como no filme
da Disney. Só que pelo ponto de vista da meia-irmã dela, Elvira, considerada
feia. É uma história cabulosa: a mãe de Elvira, Rebekka, casa-se com um velho
rico e leva as filhas para morar com o casal num castelo antigo. O homem logo
morre, e a mãe tem de cuidar sozinha das três filhas. Rebekka se endivida, não
tem como pagar despesas e comprar comida, então enxerga em Elvira um futuro;
ela forçará a menina feia a passar por uma série de tratamentos estéticos
brutais para se tornar bela a fim de conquistar o príncipe do condado. Num
reino onde a beleza impera, a coitada da garota se sujeitará a todo tipo de
tortura para ser vista, como transformação do nariz, que será quebrado e
colocado numa forma para ficar redondinho, novos cílios, que serão costurados
no olho etc. Sombrio, com homenagens ao cinema de Cronenberg – há uma cena do
cirurgião que remete a ‘Gêmeos – Mórbida semelhança’, é um filme indigesto, com
cenas fortíssimas de violência e algumas escatológicas, que podem dar ânsia,
como a do ovo de tênia e o horrendo desfecho com a machadinha no pé. A personagem
de Cinderela, a irmã de Elvira, fica em segundo plano, pois o enfoque é na
outra garota. É um tipo de filme que beira o exploitation, com momentos gore. E
tem sequências propositalmente bregas, com trilha sonora de conto de fadas e uma
fotografia com exageradas tonalidades rosas, em especial nas da imaginação da
menina em torno do príncipe encantado. Satiriza o comportamento consumidor que busca
o padrão de beleza, os procedimentos estéticos e a imposição da sociedade em
busca do corpo perfeito. Foi destaque no Festival de Sundance e no de Berlim,
que conta no elenco com Lea Myren, Ane Dahl Torp e Thea Sofie Loch Næss. Escrito
e dirigido pela norueguesa Emilie
Blichfeldt, em sua vultuosa estreia, que deu o que falar entre o público e por ser
terror até que reuniu boa bilheteria – o filme é uma coprodução Noruega,
Dinamarca, Romênia, Polônia e Suécia.
Brincando com fogo
Vincent Lindon ganhou o prêmio
de melhor ator no Festival de Veneza por este filme amargo sobre relação de pai
e filho, um drama em que ele interpreta um viúvo, pai de dois rapazes, que
agora passa a viver sozinho, já que ambos saem de casa; o filho mais novo
muda-se para Paris para estudar, enquanto o mais velho envolve-se com grupos de
extrema-direita que frequentam clubes clandestinos de luta - interpretado pelo
ator Benjamin Voisin. Este afasta-se do pai, que não aceita o novo comportamento
do rapaz nem de seus amigos ligados a movimentos extremistas. É um drama tenso,
visceral, que circunda a relação entre os dois, com embates e conflitos
geracionais, até que um crime mudará o rumo da família. Profundo, traz para
discussão um tema complexo extremamente atual, sobre o crescimento de grupos
extremistas ligados a práticas criminosas, aqui os clubes de luta proibidos, em
que jovens se esmurram até morrer. Lindon brilha em cada cena que aparece, num
papel que parece ter sido feito para ele; Voisin também segura o filme numa
explosão de interpretações memoráveis. São dois atores franceses de peso, de
gerações diferentes – Lindon já é veterano, tem 67 anos, fez mais de 80 filmes,
como ‘Tudo por ela’ e ‘Titane’, enquanto Voisin é um rosto novo, com apenas 28
anos já atuou em mais de 20 produções, frequente no cinema de François Ozon, como
‘Verão de 85’ e no recente ‘O estrangeiro’. Com o decorrer da história, pesa um
clima de tragédia no ar, e o drama se transforma em suspense, levantando
questionamentos importantes. Realizado por uma dupla de cineastas, as irmãs Delphine
Coulin e Muriel Coulin, de ’17 meninas’, com roteiro delas, adaptado do livro
de Laurent Petitmangin ‘O que é preciso à noite’. Além de melhor ator, o filme
ganhou outros dois prêmios em Veneza, onde concorreu à principal categoria, o
Leão de Ouro. Está nos cinemas, com distribuição da Imovision.
Delírio
Terror sobrenatural costarriquenho,
coproduzido no Chile, que mais deixa subentendido do que explicita, num bom
exemplar de horror psicológico. Masha, uma menina de 11 anos, muda-se com a mãe
para a casa da avó, que está com demência. Elas sentem ao redor a presença de
algo ameaçador, então Masha é isolada num ambiente fechado para que nada aconteça
a ela. Será aquilo real ou apenas a manifestação do medo? Partindo de lendas
como a do vampiro eslavo Vourdalak, o filme cria um clima de tensão crescente,
com apenas três mulheres em cena, trancadas numa velha casa de madeira. O filme
se faz justamente na apresentação do vazio da casa, dos móveis, do silêncio e
dos sussurros, que cria uma ambientação de isolamento e desconfiança de que
alguma presença fantasmagórica possa circular ali. Um filme no mínimo inquietante,
feito por uma cineasta no auge da carreira, Alexandra Latishev Salazar. Exibido
nos festivais de Shanghai e Guadalajara e na Mostra de Cinema de SP, está nos
cinemas brasileiros, distribuído pela Filmes do Estação.
Se não fosse você
Teve estreia com números
razoáveis de bilheteria o novo drama romântico do diretor de ‘A culpa é das
estrelas’ (2014), Josh Boone, que novamente recorre ao universo literário de
uma autora do momento (Colleen Hoover) para levar aos jovens uma história de
amor melosa. O filme se centra em dois núcleos de personagens – mãe e filha,
com seus respectivos relacionamentos amorosos. A adolescente Clara (Mckenna
Grace) se apaixona por um rapaz da mesma escola, Miller (Mason Thames). A mãe
dela, Morgan (Allison Williams), não aceita o romance, e as duas se atritam.
Até que um dia, uma tragédia toma conta da família Grant – o pai de Clara, marido
de Morgan, morre num acidente de carro, juntamente com a cunhada, irmã de
Morgan. A suspeita é de que o marido traía a esposa com a irmã, o que
desencadeia uma série de conflitos e busca por memórias do passado. Vejo dois
grandes problemas no filme – a escolha do elenco e o excesso de tramas paralelas
que não são bem desenvolvidas. No primeiro quesito, um elenco fraco, em
especial Allison, que não acho boa atriz, Mckenna Grace e Dave Franco, todos sem
graça; já o segundo ponto: nos livros há espaço de sobra para se escrever sobre
muitos personagens, mas no cinema é preciso condensar de forma que o público
entenda, o que não funcionou direito aqui, já que tudo fica perdido – Clara,
por exemplo, vai perdendo o foco para a história da mãe, que no segundo ato
torna-se mais importante do que a da protagonista. Não curti o resultado, mas
filmes como este acabam encontrando seu público, pois dramas românticos ainda
estão no top de procura dos espectadores. Está nos cinemas desde o dia 23/10
pela Sony Pictures.
A vizinha perfeita
Todos comentam sobre o
novo documentário da Netflix, que estreou na metade de outubro e só ontem pude
conferi-lo. Premiado em Sundance, o filme tem uma forma original, com 90% das
cenas compostas por imagens de câmeras de gravação do uniforme de policiais
americanos. O filme acompanha um caso policial na Flórida, que terminou em
tragédia, envolvendo a discussão e os constantes atritos de uma vizinha com os
moradores do bairro entre 2022 e 2023. Ela é Susan Lorincz, uma senhora de 58
anos que morava sozinha num pacífico bairro da cidade de Ocala, no condado de
Marion, Flórida. Por mais de um ano, quase que diariamente ela fazia ligações
para a polícia reclamando de seus vizinhos, especialmente das crianças do
bairro; segundo ela, viviam xingando-a e falando alto no terreno vazio ao lado
de sua casa. Os atritos crescem, a mulher torna-se uma ameaça, até que em junho
de 2023 Susan mata a tiros uma das vizinhas, Ajike Owens, mulher negra, mãe de
quatro filhos. Ela é detida, e o caso vai a julgamento. O filme é todo composto
por arquivos das câmeras policiais, onde vemos tudo ‘ao vivo’ – são diversos ângulos,
que captam momentos ao longo de um ano de trabalho dos policiais quando
solicitados para averiguação no bairro de Susan, acusada de diversos crimes,
como racismo, comportamento inadequado, calúnia e difamação, além de tentativas
de agressão. O roteiro do filme é um compilado sequencial dessas imagens das câmeras,
que mostram o bairro, Susan, a vítima, Ajike, até o desfecho trágico – nos
últimos 30 minutos, as cenas são das câmeras de vigilância do depoimento da
mulher na delegacia e gravações no tribunal do júri. O filme escancara uma
questão mal resolvida nos Estados Unidos, que é a liberação de armas e uma tese
apontada como sensível, a da ‘legítima defesa ampliada’, que está na
constituição de vários estados americanos, e, para alguns, é a liberdade para
cometer crimes. ‘A vizinha perfeita’ é um filmão, e não tem como desgrudarmos o
olho da TV. Já na Netflix.
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